Não deves opor-te a correnteza
Quando tudo ignoras sobre mim
Que vivo oculto atrás da natureza
E que distingue o bom do que é ruim.
Quando ainda no lodo, te arrastavas
Informe, obscuro em prisca era
Só eu sabia o teu destino escrito
Naquele frágil corpo de monera.
Depois te fiz pessoa por muitas formas
Grotescas, delicadas, belas e horrendas
Fostes uma planta, um peixe, o mar, um réptil
Tendo por lar o chão, o mar, as fendas.
Nesse longínquo, nem sonhavas
Pensar, agir, interrogar.
Pois eu era em ti, apenas o instinto
Há no teu imo uma força a te guiar.
Um dia fiz-te um homem!
Dei-te inteligência, amor, razão.
E a partir desse ato generoso.
Mergulhei mais fundo no teu coração.
Mas tu, insensato, louco, astuto.
Começastes a julgar-te o rei da criação
E a proceder por ti, pobre coitado
Deixaste de ver e de sentir a minha mão.
Julgas saber quem és e onde vais
E assim te debates nessa treva
Que pensas ser luz em tua cegueira.
E querendo subir, mais baixo cais
Por não saberes o que tenho para ti
Traçado ao te esboçar a vez primeira.
Se queres sábio, viver em paz contigo
Deixa fluir a vida e me descobre
E eu te direi então onde te levo
Por trás do véu que teu futuro encobre.
E terás paz, sabendo que não podes
Traçar teu rumo sem que eu mesmo o faça.
(Santarém – 1958)