HISTÓRIA QUE O VENTO LEVA…

A Natureza sempre foi desrespeitada; uma ingratidão com o planeta que tudo ao homem fornece. Foi pensando nisso que numa linda manhã, quando tudo ao redor transmitia paz, estando eu sentada à sombra de uma árvore amiga, admirando o quanto é belo tudo que Deus faz, notei que um homem de avançada idade, agachado, fixava a vista no Rio da Esperança, como a querer desvendar o inexorável destino de suas águas. Perto dele, alheio ao que seu dono pensava, um cavalo negro de pelo luzidio se deliciava em coicear a grama. Ao aproximar-me, respeitosamente o homem levantou-se, e sem que nós dois viéssemos a notar, entramos em animada conversa, ganhando confiança mútua. Tive então a ventura de ouvir, desse desconhecido, lembranças dos distantes dias de sua mocidade, quando ele, em rica e extensa propriedade, convivia com seus pais e irmãos. Eis sua história que conforme ele contava o vento levava…

    Tudo aconteceu – disse ele – no início de 1952. Estava eu despreocupado, sem nenhuma ocupação importante, quando à distância vislumbrei a figura de uma mulher cavalgando belo corcel, que na medida em que se aproximava identifiquei como sendo Diamante, um cavalo da redondeza, pertencente a uma propriedade vizinha. Diamante era famoso por sua imponência e docilidade. A mulher me era desconhecida, mas os dois, dama e animal, formavam um belo visual, digno de talentoso pintor. O céu, de um azul límpido, dava o retoque final àquela visão que me fascinava. Surpreso e também encantado em ver tão tentadora mulher em lugar tão ermo, maravilhado com sua postura de exímia amazona, senti incontrolável desejo de segui-la. Montei em meu cavalo, e discretamente acompanhei-a de longe. Não fui, porém, suficientemente prudente, pois logo ela percebeu minha presença, virando-se e fitando-me demoradamente… Seu olhar causou-me leve perturbação. Todo o meu ser vibrou… Sensação estranha, porém agradável, que no entanto despertava em mim intranquilidade. Sem que eu entendesse o porque, senti saudade… Mas de quê, meu Deus? Se nunca a havia visto antes.

    Alheia às minhas turbulentas emoções, a bela mulher prosseguia seu caminho tranquilamente. Não sei por que me senti ridículo. E isso me incomodava. Que força estranha possuía aquela mulher sobre mim? Por fim ela apeou do cavalo e desapareceu pela mata adentro. Nessa área poucos se aventuravam a ir, porque uma estranha lenda cercava o local. Movido pela conquista que contava como certa, fiz o mesmo que ela: entrei na mata. Mas, oh desventura! Tendo percorrido certa distância, preocupado em não perdê-la de vista, não vi uma armadilha enferrujada pelo tempo… Um grito de dor saiu de meu peito. Amargurado por me ver impedido de continuar seguindo-a, e sentindo dor, fiquei ali, preso e envergonhado de mim mesmo, da minha fraqueza ante uma mulher que sequer conhecia. Como sair daquela situação tão constrangedora? Temia que ela me visse naquela condição, logo eu, sempre confiante no meu poder de sedução… Entretanto, ali estava eu, angustiado e enfraquecido pela dor, sem saber como livrar-me daquela armadilha, enquanto ela, lépida que nem uma gazela, prosseguia despreocupada sua excursão pela floresta.

    O sangue escorria… Por instantes pensei na crueldade dos homens inventando essas engenhocas contra os animais. Passos ligeiros interromperam meus pensamentos. Seria ela? Teria ouvido meu grito de dor? Sim, era ela! Deus meu! Que vergonha! Que estranho destino o meu! Preso pelo pé e pelo coração… Sim, eu estava perdido de amor. Maldizendo a cilada do destino, eu capitulava aos encantos daquela misteriosa e encantadora mulher que se aproximava… Indefeso, mas com ímpetos de arrebatá-la em meus braços, a tempo compreendi que não deveria agir daquele modo. Contive minha natureza, deixando escapar a presa que certo estava eu, mais horas menos horas seria minha. Mimosas mãos sem aparente esforço livrou-me da armadilha… Tão frágil, no entanto tão ágil e corajosa. Curiosa figura… Seria um anjo disfarçado de mulher? Nesse breve cativeiro pude vê-la de perto. Bela! E eu, um pobre enfeitiçado…

    Sorrindo, ela perguntou se doía muito o ferimento. Disse-lhe que sim, e galantemente completei que vê-la assim tão perto a dor tornara-se insignificante. Ela sorriu com minha mentira. Contou-me que não costumava passear por ali, mas que sentira irresistível desejo de conhecer a vida cá de fora… Vendo aquele belo animal disponível não resistiu em montá-lo, saindo pela planície afora para sentir o cheiro da vida… Galopara várias horas até que satisfeita diminuíra a marcha, despedindo-se da Natureza. Foi quando então me viu. 

    — Jeito estranho de falar –. Disse eu. Quem é você?

    — Sou apenas uma mulher. Chamo-me Lusbelina.

    — Estranho… Eu me chamo Lusbel.

    Sorrindo e sem demonstrar surpresa pela semelhança dos nomes, tive vontade de beijá-la tão lindo era seu rosto. Mas não me atrevi. Algo me impedia de dar vazão aos meus instintos. Tive a nítida sensação de que ela conhecia minhas artimanhas e intenções, e senti vergonha de ver-me assim desnudo. Sem que eu desse conta, minha forte sensualidade foi diminuindo e sendo substituída por uma admiração respeitosa, quase idolatria por aquela estranha mulher; sentimento para mim até então desconhecido. Mesmo assim não hesitei em dizer-lhe que pela primeira vez achava estar amando de verdade. De novo ela sorriu. Falava pouco, mas parecia que nada lhe escapava. Não sei por quanto tempo ficamos a nos olhar, só sei que um torpor foi tomando conta de mim, dando-me a impressão de estar sendo transportado para um lugar diferente de onde estávamos.

    Nesse lugar notei que as pessoas que lá estavam pareciam estar aguardando nossa chegada, motivo até de regozijo. Eram pessoas de olhar tranquilo, como se a vida só lhes proporcionasse bons momentos. As mulheres nos saudavam com palmas de flores e os homens com espadas voltadas para o chão. Aquela recepção calorosa eu a sentia, mas não sabia por que sentia. Soube depois que era por sermos esposos-irmãos… A sensação que me dominava era de estar retornando a um convívio familiar do qual me afastara há milhares e milhares de séculos. Todos demonstravam extraordinária alegria com minha presença. Era como se eu fosse um herói, um guerreiro. Mas que batalhas? Se eu desconhecia qualquer ato de bravura por mim praticado. 

    Não sei se foram dias, meses ou anos que permaneci naquele lugar. Só sei que foram momentos extraordinários. Vivo das lembranças daquele tempo, na certeza de que Lusbelina um dia virá buscar-me. Quando será, não sei. Ou talvez saiba… Estou velho, cansado, mas meu coração pulsa por ela com a mesma intensidade daqueles dias da minha mocidade.

    Depois das manifestações de alegria daquele povo, minha amada conduziu-me a um compartimento onde me puseram uma roupa leve e refrescante. Cativo com o carinho de todos, estranhei meu próprio comportamento. Sim, eu não era mais o mesmo homem. Sentia que ali era o meu lugar. Mas como podia ser se eu nunca ali estivera antes? Lusbelina conduziu-me a salões belíssimos, bibliotecas gigantescas, museus admiráveis, jardins espetaculares, enfim, vi e aprendi coisas que jamais esquecerei. Tornei-me um estudioso dos grandes mistérios da vida. Um Iniciado… A mim foi transmitido um mundo de Sabedoria que eu assimilava tão bem, como se aquelas coisas já estivessem dentro de mim, aguardando apenas serem reavivadas. 

    Um dia tive a nítida sensação de que alguma coisa que vira naquele mundo não me era estranha, mas por mais que buscasse na memória não conseguia lembrar. Lusbelina observava todas as minhas reações, como se aguardasse alguma coisa que ela própria gostaria de ver em mim. Mas o quê meu Deus? Alguma lembrança? Consciência de alguma coisa já vivida? Percebi que algumas atitudes minhas causavam-lhe contentamento, enquanto outras, tristeza e constrangimento.

    Não sei por quanto tempo andei, será que andei por aquele mundo abençoado? Só sei que não queria voltar. Ou acordar… Em minhas andanças por aquele admirável Reino da Fantasia, tive a impressão de que toda a História da Humanidade e dos Céus ali se encontrava. Era comum se ver homens e mulheres debruçados sobre livros imensos, concentrados na leitura. Meus olhos corriam sobre aquele monumental acervo e pensava em como os sábios da face da Terra, cientistas, professores, escritores, poetas, pintores, artistas etc., poderiam obter ali todas as respostas às suas indagações. Extraordinário o zelo dado aos livros, às obras de arte, à arquitetura, enfim, em coisa alguma daquele mundo se notava a velhice do tempo. Nada cheirava a coisa velha. Dir-se-ia que a própria Luz do local emanava das criaturas. Estaria eu na Cidade Perdida? No Eldorado que tanto procuram? Fazia a mim tantas perguntas… Nem percebi a aproximação de minha amada. Não tive coragem de pedir-lhe que respondesse às minhas indagações. Eram tantas… Meu desejo era ficar ali, quieto, meditar sobre tudo que via. Ela sentiu em mim esta necessidade e afastou-se. Mais tarde reapareceu conduzindo-me a um Templo. Impossível descrever! Vi e senti coisas de tal magnitude, que palavra alguma alcançaria expressar. Tudo que ali se passou não me é dado contar sob pena de não mais retornar àquele sublime mundo. São acontecimentos que o vento não levará, porque estão dentro de mim, vivem em mim, e em mim permanecerão mesmo depois da morte de meu corpo, hoje velho e trôpego, de tanto peregrinar pelos estreitos e enganadores caminhos da vida.

     Depois das experiências vividas nesse grandioso Santuário, Lusbelina levou-me a sentir os alentadores raios do Sol, num jardim que na minha imaginação deve assemelhar-se ao Jardim do Éden. Meu aprendizado nesse mundo de vivos e mortos, pois não seria o caso de eu já estar morto, vivendo uma outra vida num mundo desconhecido? Meu aprendizado, dizia eu, vivesse eu duzentos anos não teria absorvido um quarto das experiências que lá vivi, os momentos de felicidade que passei. Lá, sim, eu vivi! Aqui eu resgato erros… Ah! Se a face da Terra imitasse um pouco que fosse aquele admirável Mundo Real… Teríamos o nosso El Dourado, não se precisaria sair por aí afora a procurá-lo porque ele existe! Sim, ele está dentro de nós! Eu vivi nele!

    Meu amor por Lusbelina foi crescendo… Laços misteriosos, disse-me ela, nos uniam. No entanto, apesar da pura afeição que por ela eu sentia, um sentimento de angústia começava a crescer como um mau presságio. Todas as vezes que essa incômoda sensação me atormentava, eu procurava dissuadir-me que logo passaria. Um dia, não suportando mais a frequência com que essa angústia me arrasava, indaguei da minha amada a razão de tal sentimento. A resposta foram duas lágrimas em seu rosto. Não insisti. Mas meu coração afligiu-se. No olhar de minha benfeitora eu via que nossa felicidade seria interrompida. Um desfecho triste nos aguardava.

    E de fato chegou. Foi o dia mais triste de minha vida. Nesse dia as lágrimas de Lusbelina foram como lança atravessando meu coração. Nada dissemos um ao outro, mas percebi que aquelas mesmas pessoas que antes tão alegremente nos saudaram, também estavam tristes. Um mistério insondável impunha nossa separação. Somente anos mais tarde compreendi. Não havia sido a primeira vez… Uma Lei Maior determinara não como castigo e nem para nos fazer sofrer, mas porque este que vos fala sonegou esta mesma Lei, a tal ponto que nas várias vidas que teve na região das tormentas que é a face da Terra, viveu sem a sua companheira de missão. Mas o dia da minha remissão chegou! Agora posso voltar ao mundo ao qual pertenço! Sucessivas vidas longe do meu reino é a razão de ter esquecido minha origem. No dia do meu retorno Lusbelina virá buscar-me. Eu e ela somos um. O mesmo espírito nos anima. Falar de despedida é sempre triste, mas superior à tristeza que senti ao separar-me de minha amada, não existe igual. Foi uma ressurreição morrendo ao mesmo tempo. Explico: ressurreição porque voltei em consciência à situação em que me encontrava antes na floresta, junto à armadilha, porém livre. E morrendo, porque estava sem a minha benfeitora, já então desaparecida, até que a verei de novo no grande dia da minha Redenção.

    Para quem como eu conheceu o Paraíso, não pode haver pior exílio do que retornar à face da Terra. Muitos poderão dizer que minha história foi um sonho. Não foi, porque meu estado de consciência ao despertar na floresta, era outro. É bem verdade que a ilusão é um fato, mas é ela quem cria os obstáculos que vamos vencendo para evoluir e nos tornarmos livres. Retornei daquele Mundo Encantado com plena consciência dos anos que desperdicei em coisas inúteis e desprezíveis. Valorizei minha alma. Não sou mais o mesmo homem. Velho e cansado, sim, mas apenas no físico, que infelizmente não acompanha o ritmo do tempo, mas com a mente de um adolescente, aguardando apenas, com grande ansiedade e alegria, a volta da minha amada, quando então sairei deste mundo em corpo, alma e espírito, consciente de que Eu sou quem sou!

    Nenhuma experiência vivida por mim antes foi superior à que vivi no País das Fantasias Reais, um mundo onde não existe ódio, nem doença, nem velhice e nem morte. Tudo que relatei é verdadeiro e poderá ser passado para outros, e se quiser pode chamar de História que o vento leva…

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Zélia Scorza Pires – 1980

Publicado na revista Aquarius.

 

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