O TÚMULO DE JULIETA (Parte 1)
Henrique José de Souza
Ao ouvirmos falar dessa criatura de amor e poesia, respondíamos sempre sustentando a crença de que a imortal tragédia não passava de admirável fábula a que o grande Shakespeare infundiu um sopro de vida tão poderoso, que ainda hoje se torna impossível não acreditar que Romeu e Julieta não fossem, de fato, duas criaturas de carne e osso, como Paulo e Francisca, por exemplo.
Antes nunca o tivéssemos negado!
Nosso amigo, um apaixonado veronês, a quem fôramos apresentado, interrompeu-nos certa vez:
— É então, um dos muitos que consideram a trágica história como uma lenda do tempo dos doces suspiros?
Ao advertir essa nossa descrença, prosseguiu citando um número imenso de autores e de textos, demonstrando que laborávamos em erro:
— De fato, dizia ele, a obra do grande poeta inglês está cercada de profundo mistério, senão, o próprio autor, pois, como não deve ignorar, existem muitos que procuram provar que Shakespeare, isto é, que o autor da magnífica coletânea de obras geniais, foi um tal William Stanley, conde de Derby, que ocultou seu verdadeiro nome por trás do daquele gênio, como um dos atores de sua Companhia dramática. A respeito, porém, da tragédia do apaixonado Romeu, as coisas se acham mais claras. Procure seguir comigo seu verdadeiro processo e mudará de opinião: um historiador e poeta de Vicenza, Luis Da Porto, descreve por vez primeira os decantados amores em uma história publicada em Veneza em 1513. Mateo Bandello, o melhor novelista e narrador italiano, depois de Boccacio, reforma e completa – acusado de plagio – a obra de Luis Da Porto. Em 1560 consegue que seu trabalho, traduzido por Boisteau, passe os Alpes para ver a luz em França, e mais tarde, na Inglaterra, quando Brooke, dois anos depois publica, em inglês, a amorosa história em mais de três mil versos. E… Shakespeare escreve a imortal tragédia já conhecida na Inglaterra pela obra de Brooke.
Por outro lado, continuou o bom veronês, os cronistas de Verona Torri e Scolari, afirmam que os trágicos amores possuem fundo histórico. E Jerônimo Della Corte, em sua História de Verona, dá o fato como realmente acontecido em 1303, no tempo do príncipe Bartolomei Della Scala. O inglês Axton participa dessa crença… digo mais, a maioria dos críticos se expressa do mesmo modo; não nego – ajuntou depois de uma pausa – que outros, como Chiarino por exemplo, pretendam buscar a origem do que ele chama de “lenda”, nas fontes clássicas, para logo afirmar que tal lenda se une ao espiritual tema do amor fatal, tão frequente na literatura pagã: Piramo e Tisbe, Hero e Leandro, Tristão e Isolda. Porém, eu creio, como crê Verona, no fato histórico e, portanto, nego que se trate de um simples monumento da literatura artística, que completa uma obra da literatura popular… como disse Leati. Senão de uma verdadeira história que Shakespeare, descreveu e pintou, com as mágicas cores de seu incomparável gênio.
Realmente encantado com a boa prosa de nosso amável veronês, arriscamos a seguinte pergunta:
— Não crê, entretanto o amigo que seja estranho, Dante, o excelso poeta de Francisca, de Pia e de Piccarda, não haver mencionado os tristes amores de Julieta, quando, desterrado e pobre, encontrou precisamente em Verona, e naquela época, o primo ostello junto do príncipe Bartolomeu Della Scala?
Nosso amigo, encolhendo os ombros, respondeu:
— Diz-se que um francês, creio que Montegut, pretendeu demonstrar com essa teoria, que o idílio não passa de uma fábula; porém, se não me engano, Dante, em seu Purgatório, diz algo a respeito dos Capuletos e dos Montescos, inclusive, de suas amizades e façanhas… Ademais, é a tradição quem responde com duas magníficas provas: a casa dos Capuletos e o próprio túmulo de Julieta. Há uns seis ou oito anos o Município de Verona procurou vender em hasta pública, ambas essas recordações. E sabe o que aconteceu? O próprio povo veronês, ou melhor, o povo italiano a isso se opôs franca e decididamente, fazendo fracassar semelhante projeto… Casa e túmulo são sagrados para Verona, pode crer, especialmente o segundo: da primeira, enfim, nada se pode dizer.
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Horas depois atravessamos Verona, em busca do bairro extremo, onde a tradição colocou a magnífica prova – ao dizer de Verona – de que os heróicos amantes que o Amor conduz à u´a morte, pertencem à História e não à fantasia exuberante desse grande poeta, que se chama Povo.
Ao chegarmos ao romântico santuário, digamos assim, por cujas paredes se enroscavam lindas trepadeiras, nosso companheiro se deteve:
— Eis aqui o túmulo de Julieta Capuleto.
Confessamos que, influenciados, talvez, pelo aroma que transcende dos legendários amores, esquecemos, por momento, nossas dúvidas. E, guiados por instinta curiosidade, penetramos no triste recinto, cuja melancolia não lograva dissipar o sol que o banhava naquela tarde silenciosa…
Nossos olhos convergiram para um sarcófago de róseo mármore, horrivelmente carcomido pelo tempo; duas lápides, também de mármore, nos muros; uma espécie de nicho, cuja base se prolonga sustentada por antiga coluna; um livro e algumas flores. Porém, a tradição falou pela boca do bom veronês: naquele túmulo foi colocado o narcotizado corpo de Julieta. (2). Aquele róseo sepulcro era o mesmo que, convertido em tálamo della morte, acolheu os corpos dos desventurados amantes, após a tragédia, que o ódio de Capuletos e Montescos sobre eles fatalmente havia de se desencadear… Ainda: aquele sarcófago, destampado e carcomido, não havia apenas sofrido a ação destruidora do tempo, mas também, o efeito da ingenuidade e superstição dos peregrinos de amor, que àquele velho túmulo vão em busca de pequenos pedaços de mármore, considerados amuletos de raro valor para as aventuras amorosas. Ali se veem, ainda, nas lápides murais, mal traçadas inscrições cuja relação com a piedosa lenda é quase impossível decifrar. E, quanto àquele livro colocado no pequeno nicho, oferece ao curioso sentimentalista, no mistério de suas velhas, gastas e amareladas folhas, a história dos célebres amantes de Verona. E as flores, a muda homenagem de almas femininas que, ano após ano, dia após dia… rendem, devocionalmente, sua homenagem à Julieta…
Observando que ao sepulcro faltava a pedra que o cobria em remotos tempos, perguntamos por seu paradeiro. A curiosa resposta foi esta: é a História e não a tradição que afirma ter sido tal pedra transladada para Viena, por desejo do arquiduque D. João d´Austria, que a comprou por elevado preço. Como também prova a História, que a primeira mulher adornada com fragmentos do funéreo mármore, foi Maria Luiza d´Austria:
em 1828 teve ela o estranho capricho de mandar fazer um colar com pequenos pedaços da rósea pedra tumular, quando a mesma foi transportada para Verona, depois da morte da Fênix de Santa Helena… (3)
Uma representação da tragédia shakespeareana nos fez evocar os sagrados lugares de tão legendários amores… E enquanto a longínqua e tristonha recordação, nos trazia à memória, aquele mármore, que a superstição despoja; o sentimental tributo de flores, que jamais deixa de haver no velho sepulcro… E as palavras do bom veronês, perturbando a eterna interrogação: provará um dia a História, que semelhante túmulo pertence aos protagonistas da piedosa lenda de Verona?
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- Tradução para a português por Henrique José de Souza, do artigo de Alfredo de Molina, datado de Milão, 1924. Tradução publicada pela primeira na revista Dharana nº 87/88, ano 1936. (Nota da redação).
- Muitos foram os corpos de pessoas de grande valor na História… enterrados com vida, embora que, narcotizados, ou em cataléptico sono, para terem um outro destino que a Humanidade vulgar está mui longe de compreender. Por isso mesmo, exige o bom senso ou senso comum, que a humanos pertence… não sermos nós quem vá desvendar a causa ou razão de tamanho mistério! Respeitemos, pois, certos túmulos – mesmo quando vazios… por serem verdadeiros templos ou sacrários a que os próprios judeus de outrora cognominavam de: Sanctum Sanctorum! E os franco-maçons, com aquela famosa Palavra de 7 letras, por nós várias vezes citada: VITRIOL, isto é, “Visita interiora terrae rectificando invenies omnia lapidem”. (Nota do tradutor).
- Em relação a Napoleão, cuja Lei de Causalidade liga a sua história àquela outra dos poéticos amantes de Verona: Romeu e Julieta, através de um amor forçado (Maria Luisa) em substituição ao seu verdadeiro amor, que foi Josephine Beauharnais, cujas iniciais (J e B) colocavam o enigmático “cabo de guerra”, entre as iniciáticas Colunas do Templo de Salomão, Jakim e Bohaz, principalmente quando dirigido por não menos estranhos e misteriosos personagens que o aconselhavam nos momentos duvidosos. E logo deixou de ouvir a sua voz – como Voz da Razão, ou do verdadeiro senso espiritual (que nada tem de comum ou vulgar) paga a sua desobediência… na famosa “batalha de Waterloo”, com o consequente exílio em Santa Helena… (Nota do tradutor).