DUAT – Uma Viagem aos Mundos Subterrâneos

DUAT – Uma viagem aos mundos subterrâneos

Por: Eymar da Cunha Franco

O Sol estava no zênite, e tudo, na bucólica pracinha de Maria da Fé, sul de Minas Gerais, respirava aquela paz infinita que só se encontra nas pequenas cidades serranas. O céu, brilhante, transmitia a todo o ambiente uma luminescência azulada que se mesclava com o verde intenso das árvores e dos campos das cercanias. As ruas quase desertas àquela hora, pareciam mergulhadas num sonolento abandono, enquanto as árvores da praça deixavam cair lentamente ao chão as pétalas amarelas e lilases de suas flores, formando um tapete matizado, de indescritível beleza.

Num dos extremos do parque, dois travessos garotos atormentavam um venerando bode, puxando-lhe a barba ou tentando montá-lo. Lá mais adiante, uma improvisada engenhoca aguardava algum eventual freguês do caldo de cana espremido na hora. Aqui e ali, uma cigarra ensaiava o canto monótono e melancólico. Sentado em um dos bancos menos ensolarado, eu cochilava repousadamente, enquanto aguardava por meus dois amigos, Edgar e Nelson, que cerca de cem metros mantinham animada palestra com alguns moradores locais, à porta de um armazém. Era tão grande a quietude e a paz daquele ambiente que chegava a parecer-me quase irreal, vindo como viera, de uma buliçosa metrópole de cinco milhões de habitantes. Estava ali a convite de Edgar, que possuía nos arredores uma linda vivenda, onde sua veneranda mãe se recolhia com freqüência, para dar expansão ao seu amor pela natureza e desenfastiar-se das tensões da cidade.

Havíamos chegado na véspera, ao entardecer, e deveríamos ali permanecer até o dia seguinte pela manhã. Mergulhado naquele estado de alma no qual nos sentimos como que afastados de todos os problemas, não cheguei a me aperceber do momento em que, ao meu lado, como que materializado do nada, surgiu um estranho personagem que tranqüilamente me fitava.

A princípio, mal percebi sua pessoa; porém, logo em seguida, como que desperto do meu devaneio reparei que a sua presença tinha algo a ver comigo, pois os seus olhos estavam pregados em mim, como se desejasse dirigir-me a palavra. Prestei então atenção àquela figura singular que, a menos de dois metros de distância, permanecia estático, com os braços cruzados sobre o peito, numa atitude confiante e até certo ponto arrogante. Examinei-o melhor; era um homem trigueiro, envergando calça branca e camisa da mesma cor, de mangas longas abotoadas nos punhos. A cabeça descoberta mostrava uns cabelos negros, enroscados como minúsculas serpentes, o que lhe dava um aspecto formoso. No rosto escuro, uma barba espessa, da mesma cor dos cabelos, emoldurava a boca de lábios grossos, porém bem talhados. O que, no entanto mais chamava a atenção naquele personagem, eram os imensos olhos rasgados, de pupilas intensamente negras e brilhantes, dos quais parecia desprender-se um poder hipnótico. A primeira impressão que tive foi de que se tratava de um cigano, e isso me deixou contrariado, pois a presença de semelhante indivíduo, ali tão próximo, não me agradava. Confesso que o juízo que faço dos ciganos não é muito lisonjeiro, talvez em razão das estórias que, quando criança, ouvi a respeito de tal povo. Assim, resolvi ignorar aquela insólita presença e, desviando a vista, busquei mergulhar novamente na minha interrompida contemplação das cercanias. Estava escrito, contudo, que o meu desejo de solidão não seria respeitado, pois o cigano, aproximando-se mais de mim, veio postar-se bem à minha frente, forçando-me, assim, a não ignorá-lo. O seu passo seguinte foi levar a mão espalmada à região umbilical e fazer uma leve reverência em minha direção, ao mesmo tempo que pronunciava algumas palavras ininteligíveis, numa linguagem sibilada, que mais parecia o zumbido de um inseto. Notando o meu espanto diante de seu linguajar, o homem deteve-se por um momento como que indeciso e, quando voltou a falar, o fez em um correto português, porém sempre mesclado por aquele sotaque estranho, embora agradável. Suas primeiras palavras foram:

– Desculpe se o importuno, porém necessito falar-lhe e espero que me conceda uns minutos de atenção.
Encarei o meu interlocutor, e confesso que me senti impressionado pela austera gravidade de seu rosto, no qual um misto de arrogância e humildade causava o mais vivo contraste. Não havia a menor esperança de furtar-me ao assédio, principalmente depois que os seus olhos colheram os meus, mantendo-me como que fascinado pelo poder que deles emanava. Senti subitamente uma leve perturbação e, no momento, não soube o que responder. A custo esbocei um sorriso contrafeito e consegui dizer:
– Creio que o senhor me toma por outra pessoa, pois não me lembro de já lhe haver falado antes.
– Perdão! – voltou ele – É mesmo com o senhor que eu desejo falar e peço-lhe que me ouça alguns minutos. Eu também não o conhecia até há poucos minutos e, quanto ao senhor, pode estar certo de que realmente jamais me viu antes. Dizendo isso, perguntou se podia sentar-se ao meu lado e, antes mesmo que eu lhe respondesse, sentou-se na extremidade do banco que eu ocupava, sem contudo deixar de fitar-me daquela maneira fixa e inescrutável. A seguir, tomando a palavra, disse:
– Serei breve, pois não posso demorar-me mais do que alguns minutos.
– Estou ouvindo – disse-lhe eu – O senhor pode falar sem acanhamento. Ele sorriu ante as minhas palavras e, sem rodeios, começou a falar-me com aquele incrível sotaque:
– Sou portador de uma mensagem para o senhor. Ela é a resposta a tantas conjecturas que o senhor tem feito durante vários anos, e deitará por terra certas dúvidas que o senhor ainda tem, sobre a realidade dos mundos interiores.

A minha reação ante essas palavras foi realmente de espanto, e creio que o sangue me fugiu do rosto. Não demorei, contudo, a tornar-me senhor de mim, e foi então que compreendi que tudo aquilo deveria ser, nada mais, nada menos, que uma brincadeira preparada por Edgar e Nelson, para se divertirem às minhas custas.

Não havia a menor dúvida de que eles haviam encontrado um excelente artista para representar a peça que haviam preparado. Já mais calmo depois daquela primeira impressão que me causara o desconhecido, resolvi deixar que ele continuasse com a iniciativa, reservando-me o papel de comparsa aparentemente inocente naquele jogo. Afinal de contas, eu não estava mesmo fazendo questão do tempo, e bem poderia brincar de cabra cega com aqueles dois pilantras, que ali próximo continuavam a conversar animadamente à porta do armazém, ao que parecia inteiramente esquecidos de mim.

– Quer dizer que o senhor me traz uma mensagem – disse eu, sem poder disfarçar certa ironia – De que se trata e quem me manda essa mensagem? Afinal de contas, esta é a primeira vez que venho a esta cidade e não conheço absolutamente ninguém aqui. Minha mudança de atitude não passou despercebida ao estranho. Ele fez menção de levantar-se, sua fisionomia tornou-se mais dura e seus olhos despediram um rápido lampejo, cujo sentido não sei se foi de cólera ou de desdém. Resolveu, porém, continuar onde estava, e calmamente prosseguiu.
– O senhor vai desculpar-me, mas creio que não faz jus ao que tenho para dizer-lhe. Julga que estou brincando? Por que iria brincar sobre um assunto tão sério, ao menos para mim? – replicou ele com aquele ar de arrogância que fazia parte de sua personalidade – E prosseguiu: Entretanto, devo cumprir uma ordem, e isso é tudo o que importa.
Por um momento senti-me ruborizar diante da gravidade do semblante daquele desconhecido. Havia em sua pessoa algo que não se coadunava com a idéia de que estivesse desempenhando uma farsa engendrada pelos meus companheiros. Comecei a ficar preocupado com o tom da nossa conversa, porém de maneira alguma eu estava disposto a deixar-me enredar numa armadilha preparada por Edgar e Nelson, dando-lhes motivo para rirem-se de mim. Assim, disposto a deixar que o estranho levasse até ao fim suas intenções, retruquei:
– Perdão, senhor, eu não quis ofendê-lo, mas… – O senhor está enganado – voltou ele – Não me ofendem as suas palavras e o conceito que faz de mim. É ao senhor mesmo que está ofendendo, pois a julgar pelo que sabemos, admite a existência dos mundos subterrâneos, embora, apenas, como uma vaga possibilidade, apesar das evidências que sobre o mesmo existem em todas as partes do mundo. Quando alguém se propõe a fornecer-lhe as provas necessárias, o senhor o toma por um comediante ou por um louco. As palavras daquele homem começavam a irritar-me, não só pela maneira como eram ditas, como pelas verdades que encerravam. Eu me sentia embaraçado, porém procurava dominar-me, pois reconhecia que aquela figura singular exercia sobre mim um poderoso fascínio. A esta altura de nossa conversa, eu começava a ficar confuso. Se, por um lado, eu estava certo de que tudo não passava de um gracejo, por outro, em minha mente começava a surgir uma dúvida que me inquietava. E se realmente aquele homem estranho estivesse falando a verdade? Se ele realmente tivesse algo a transmitir-me? Aqui cabe um longo parênteses.

Desde jovem comecei a sentir viva atração pelo Ocultismo como Ciência, ou Teosofia, embora nenhuma inclinação eu tivesse pela sua prática no ramo da magia. Durante muitos anos dediquei grande parte de meus estudos a essa Ciência e, quanto mais mergulhei no âmago de seus conhecimentos, mais me capacitei de que a mesma possui as chaves de um saber extraordinário, que abarca não só o mundo dos efeitos como o mundo das causas. Absorvi uma série de conceitos que me pareceram sempre muito além daqueles comumente acatados pelos homens de ciência, passando a olhar o mundo por um prisma um tanto diferente sob vários e importantes ramos do conhecimento. Entre esses conceitos, começou a surgir em meu horizonte, a concepção de que paralelamente à vida que se desenvolve em sua superfície, no interior das camadas que poderemos chamar de revestimento do globo, pulsam órgãos e sistemas, nos quais um outro tipo de vida se desenvolve, num metabolismo não bem compreendido, mas intimamente relacionado com nossa vida. O globo terrestre passou a se me afigurar um ser vivo unitário, quase semelhante ao homem, tendo suas próprias e definidas funções vitais e, bem assim, uma consciência, impossível de dimensionar por nós humanos, mas nem por isso menos real do que a nossa própria. Assim como o homem é o somatório de todos os órgãos que o compõem, cujo conjunto forma a nossa personalidade, a Terra, como um ser vivo, é o somatório de todos os seres que a habitam, seres esses cuja genealogia está muito mal conhecida e estudada. Os mundos interiores nessas condições seriam o verdadeiro laboratório onde se processam vários fenômenos de natureza desconhecida para nós, mas não para as formas de consciências que ali existem e evoluem a seu modo. Entre essas formas vitais se incluem seres de várias hierarquias, sendo que as mesmas estão intimamente relacionadas com os seres humanos que vivem na superfície, e dos quais poderíamos dizer, são os verdadeiros arquétipos. Nesse mundo de condições vitais, inteiramente diferentes das nossas, sempre penetraram os homens mais aptos surgidos entre todos os povos, em todas as épocas, e dali saíram, também, outros homens que por missão específica a ser desempenhada no seio das sociedades humanas, aqui estiveram realizando tarefas mais ou menos importantes, todas elas, contudo, relacionadas com o processo evolutivo da humanidade em geral. Verdadeira Arca ou Barca, ali se recolhem as sementes fecundas dos ciclos de vida na superfície, e dali saem como verdadeiro fermento para ser incorporado à massa, expressões humanas que o mundo nem sempre compreende, a não ser séculos depois que suas presenças se fizeram marcantes nos processos sociais.

Todos esses conceitos eu havia encontrado nas obras que lera, porém, somente depois que encontrei um Homem singular e de uma sabedoria universal, foi que realmente comecei a dar crédito a umas tantas afirmações lidas aqui e ali. Esse Homem extraordinário falou-me longamente sobre esse mundo interior, cheio de mistérios e de encantos, apresentando à minha mente uma série de proposições embaraçosas. Segundo ele, o Brasil está cheio de aberturas que conduzem ao interior desse mundo, o qual, de acordo com os diferentes graus de proximidade com a superfície, e também, de acordo com os seres que neles evoluem ou vivem, se divide em mundo dos Badagas, o mais superficial; o mundo de Duat, ocupando uma região mais profunda, embora ainda bastante periférica; o mundo de Agartha, disposto retilineamente ao longo daquilo que chamamos eixo terrestre, estendendo-se de pólo a pólo, e, finalmente, Shamballah, uma região indescritível e indevassável, onde a matéria se apresenta num estado absolutamente incompreensível para as nossas mentes, acostumadas a raciocinar em termos de três dimensões. Em cada um desses mundos viveriam seres peculiares, assim como peculiares são seus modos de vida e seus estados de consciência. Aqui termina este longo parêntese, o qual permite compreender-se porque motivo aquele estranho personagem, sentado ao meu lado, me causava certa inquietação, e me lançava num torvelinho de contradições íntimas. Eu gostaria de crer que suas palavras eram verdadeiras, mas, algo em mim se recusava a aceitá-las como verídicas. Era-me mais fácil crer que tudo não passava de um arranjo feito pelos meus dois amigos para rirem-se de mim, uma vez que eles também se dedicavam ao estudo científico do Ocultismo ou Teosofia, filiados a um centro ou colégio, onde havia farto material sobre o assunto.

– Perdão! – retruquei –. Mas o senhor não está sendo muito gentil…
– E que direi do senhor? – voltou ele – Primeiro me toma por um importuno cigano que talvez viesse assaltá-lo ou pedir-lhe dinheiro. Depois, julga-me um comediante a serviço de seus amigos. Qual será o seu próximo conceito sobre a minha pessoa?
Nessa altura fiquei sem saber o que dizer. O homem parecia ler os meus pensamentos, e isso me deixava numa situação ainda mais confusa. Em verdade eu começava a ficar perplexo. Assim, guardei silêncio e deixei que o meu interlocutor desse o passo seguinte e abrisse o seu jogo, para ver até onde iríamos com aquele diálogo quase absurdo.
– Bem! – atalhou ele – Não posso deixar de reconhecer que o senhor, até certo ponto, tem razão de manifestar a reserva que demonstrou. Afinal, a maneira pela qual eu o abordei foi um tanto invulgar. Faltou-me talvez aquilo que o senhor definiria como tato. Acontece que nós não damos o mesmo valor às convenções quando se trata de desempenhar uma tarefa.

O tom de gravidade com que aquele homem me falava chegou a causar-me um estremecimento. Sua voz havia assumido um tom cordial e quase paternal. Seus olhos haviam perdido aquela rudeza, embora seu rosto permanecesse impassível. Sem saber ainda o que dizer e não de todo convencido de que tudo não passava de um blefe, mantive-me em silêncio.

– Muito embora o senhor e seus dois amigos não estejam absolutamente preparados para a experiência que irão viver, terão condições para, dentro de algumas horas, visitar um pequeno recanto do mundo de Duat; tudo isso em função de um acontecimento que ali se dará e que deve ter tremenda repercussão aqui na superfície. A escolha que recaiu sobre as suas pessoas tem razão de ser, embora eu não esteja autorizado a adiantar mais nada sobre este assunto. No seu devido tempo irão compreender muitas coisas que hoje não entendem. Está, todavia, em suas mãos, a livre aquiescência a esse convite. Poderá o senhor aceitá-lo ou recusá-lo, mas sua resposta deverá ser dada agora.

Fiquei francamente sem saber o que dizer. Por meu espírito passavam as mais desencontradas idéias. Se, por um lado, tudo o que aquele homem estranho me dizia encontrava eco em meu coração, por outro lado tudo me parecia tão esquisito e invulgar que eu mais me inclinava pela hipótese de que não se tratava de nada sério, mas, tão somente, de uma brincadeira de Edgar e Nelson. Depois de alguma hesitação, cheguei à conclusão de que qualquer que fosse o resultado daquela conversa absurda, nada eu teria a perder, desde que agisse com precaução, não dando oportunidade aos meus dois companheiros de viagem, para tirarem o proveito que desejavam.

Uma vez resolvido a ver onde iria terminar tudo aquilo, senti-me mais tranqüilo e dirigindo-me ao personagem que ali estava ao meu lado, perguntei-lhe se meus dois amigos também iriam e que deveria eu fazer para que se concretizassem as suas palavras. O desconhecido disse-me acreditar que meus companheiros estariam inclinados a participar da aventura, pelo menos um deles, mas que estava proibido de lhes falar no assunto, quaisquer que fossem as razões que me ocorressem. Em seguida, disse:

– Hoje, após as 22 horas, o senhor me verá outra vez em situação bem diferente desta agora. Sabemos quão pouco os senhores são capazes de realizar por si próprios no sentido de uma preparação para o ingresso em nosso mundo. Nós tomaremos todas as providências necessárias, bastando que o senhor e seus amigos sigam fielmente as instruções que receberem.
Preste bem atenção ao que vou dizer-lhe: às 18 horas em ponto deverá o senhor procurar um lugar isolado e, durante 15 minutos, recitar as seguintes palavras (a essa altura ele me transmitiu umas estranhas palavras escritas num pedaço de papel), e, a partir desse momento, deixar completamente de lado todas as suas preocupações mundanas, recitando mentalmente apenas a parte final do que aí está escrito. A hora em que sentir sono, deverá o senhor deitar-se, porém antes deverá lavar as suas mãos, rosto e peito. Guarde o mais completo sigilo sobre tudo aquilo de que falamos aqui; mesmo com seus amigos não deve o senhor falar nada.

Em seguida, o desconhecido, que parecia, a esta altura, haver-me hipnotizado, colocou-me nas mãos um objeto de metal preso a uma fina corrente de prata, dizendo-me:
– Prenda este amuleto em seu pescoço por baixo da camisa, de modo que fique em contato com o corpo, e por nada deste mundo deixe que alguém o veja e toque. Ele contém elementos magnéticos que irão atuar sobre o senhor e prepará-lo para a viagem que vai fazer ainda hoje.
A essa altura eu já não sabia mais o que pensar. Tudo parecia tão sério e real, que, mesmo ainda suspeitando tratar-se de um gracejo, não podia negar que tudo fora preparado em suas minúcias. O estranho, após dizer mais algumas palavras, que não me lembro, levantou-se. Mantendo os olhos fixos nos meus, exercia desse modo um fascínio sobre mim, que me deixava totalmente à sua mercê. Em seguida, tornou a fazer a mesma reverência à guisa de despedida, e sobranceiramente me abandonou, desaparecendo na esquina mais próxima, depois de atravessar em diagonal a praça. Só então foi que eu reassumi o pleno controle sobre mim. Ali estava eu, sentado no banco da praça tranqüila, olhando abobalhado para o estranho amuleto que tinha na palma da mão. Meus pensamentos em tumulto brotavam de meu cérebro e, francamente, não sabia ainda que deduções tirar. A idéia de que tudo não passava de um gracejo de meus amigos voltou a firmar-se com mais intensidade em meu espírito e a mim parecia que, a esta altura, eles deveriam estar divertindo-se secretamente com o desenrolar do primeiro ato da peça que me haviam preparado.

Mas… e aquela coisa que eu tinha nas mãos? Comecei a examiná-la detidamente: era feita de um metal prateado e trazia no centro a figura de uma corça, ou veado, cercada por uma coroa de louros e tendo uns estranhos signos gravados em relevo. Na outra face, também em relevo, destacava-se um caduceu de mercúrio, sendo que as duas serpentes eram verde e vermelho, respectivamente à direita e à esquerda. Também, desse lado, havia inscrições que eu não podia decifrar.

Foi contemplando essa espécie de amuleto que meu espanto aumentou, pois era impossível que meus amigos houvessem programado a brincadeira com tal riqueza de pormenores, a ponto de colocarem em minhas mãos uma peça como aquela, cuja beleza de confecção era notável. O seu tamanho era o de uma moeda de polegada e meia de diâmetro, com as bordas lisas e tendo na parte superior um pequeno orifício ou olhal, por onde passava a correntinha de prata que o prenderia ao pescoço.

Se Edgar e Nelson haviam preparado aquele gracejo, tinham, sem dúvida alguma, arranjado muito bem as coisas, porém a presença daquela peça artística em minhas mãos era uma boa arma para desmascará-los, e, uma vez que eu guardasse sigilo sobre ela, eles teriam que se denunciar se desejassem reavê-la. Nessa ocasião, eu me vingaria, negando houvesse recebido qualquer prenda, deixando-os embaraçados e sem poder entrar novamente na posse daquela beleza de jóia.

Não podia, contudo, furtar-me à impressão que o desconhecido me causara. A sua maneira de falar, aquele sotaque curioso, o poder de seu olhar, a gravidade de seu semblante, tudo isso me deixava perturbado. Como fora possível a Edgar conseguir um artista daquele quilate? Foi então que eu comecei realmente a pensar que talvez eu estivesse laborando num terrível equívoco, e que o meu visitante de há pouco talvez fosse realmente aquilo que dizia.

Uma vez mais olhei o amuleto e, sem querer, senti um calafrio percorrer-me o corpo. Instintivamente olhei ao redor procurando divisar a figura do homem de branco. Tudo na praça continuava, entretanto, mergulhado na mesma placidez. Os garotos agora divertiamse a soltar fogos juninos, rindo alegremente. Meus dois amigos ainda conversavam animadamente à porta do armazém, e ali estava eu no mesmo lugar como se nada houvesse acontecido. Balancei a cabeça vigorosamente como a querer afugentar um sonho e desfazer-me daquela sensação inquietante e desagradável que ainda me oprimia. Despertei daquela espécie de torpor ao ouvir o meu nome chamado pelos meus dois amigos que, tendo terminado a conversa, aproximavam-se de mim convidando-me a irmos para casa almoçar.

Rapidamente guardei no bolso o amuleto que ainda tinha nas mãos, e fui juntar-me a Edgar e Nelson, inteirando-me da conversa e procurando apanhar alguma frase que me servisse para indicar que eles sabiam o que acabava de suceder comigo. A conversa que mantinham, entretanto, versava sobre assuntos que absolutamente não tinham qualquer ligação com aquilo que eu acabara de viver, e foi assim que chegamos até a casa de Edgar. Confesso que não me foi fácil deixar de falar sobre o meu encontro com o desconhecido, mas consegui conter-me. Não lhes disse uma só palavra e mantive-me o mais tranqüilo possível, de modo a não permitir qualquer suspeita da parte deles.
Após o almoço, retiramo-nos para a sesta e não tardou que eu adormecesse profundamente. Meu sono, porém, foi povoado de sonhos estranhos, nos quais me aparecia sempre a figura do homem de branco. Despertei uma ou duas horas depois sem lembrar-me do sonho que tivera, porém começava a sentir a aproximação de uma enxaqueca. A cabeça doía-me terrivelmente. O resto da tarde escoou-se lentamente e, de quando em vez, eu apalpava discretamente o célebre amuleto que havia dependurado ao pescoço, embora com relutância, pois, no íntimo, eu tinha a convicção de estar fazendo um triste papel.

À medida que o dia se aproximava do seu final, aumentava em mim uma inquietação interior e agravava-se a minha dor de cabeça. Finalmente, o sol mergulhou atrás das altas montanhas, e uma noite, com ameaça de tormenta, desceu sobre a terra. Nuvens escuras acumulavam-se no nascente e relâmpagos lívidos riscavam o céu. A temperatura entrou em declínio, e um vento gelado soprava balançando a copa das árvores. Dentro em pouco a tempestade desabava, cheia de raios e trovões.

No interior da casa eu e meus dois companheiros conversávamos sobre assuntos triviais. Lentamente a conversa perdeu a sua animação e, dentro de poucos minutos, havia cessado totalmente. Nós três permanecíamos em silêncio e como que absortos em nossos próprios pensamentos. Não sei o que se passava com meus dois amigos, mas eu sentia em todo o meu corpo um profundo torpor e um sono avassalador se apossava de mim. Fizemos um lanche ligeiro e, meia hora depois, manifestei desejo de recolher-me, no que fui prontamente seguido por Nelson, que ocupava o mesmo quarto que eu, no andar térreo da residência.

Não tardou muito que eu adormecesse profundamente, não sem antes haver cumprido os preceitos que me havia dado o desconhecido. Não sei por quanto tempo dormi, mas lembrome perfeitamente que, dentro de algum tempo, um sopro quente atingiu meu rosto e uma voz distante parecia chamar por meu nome… Despertei em sobressalto sentando-me na cama, e foi então que começou um dos mais estranhos episódios da minha vida. Também sentado em sua cama vi Nelson apesar da total escuridão que reinava no aposento. Seu corpo brilhava envolto em irreal luminescência. Olhando para minhas mãos, notei que elas também brilhavam da mesma maneira, como se fossem feitas de uma luz prateada que seirradiava por todo o ambiente.

Sem pronunciar uma só palavra e como se obedecêssemos a um comando remoto,erguemo-nos e encaminhamo-nos para a porta que dava para o exterior, mas, ao invés deabri-la, passamos simplesmente através da mesma, e num instante estávamos ao ar livre. Achuva fina que caía, não nos incomodava e nem sentíamos frio. Paramos frente a frente eolhamo-nos espantados e um tanto ou quanto confusos. Nesse instante descia lentamente aescada o nosso amigo Edgar, vindo juntar-se a nós, também envolto por aquela espécie deluz diáfana que me intrigava. Foi então que eu arrisquei uma tímida frase:
– Vocês receberam a visita do cigano? Notei que ambos pareciam surpresos ao ouvir a minha voz e eu mesmo me surpreendi com ela, pois em verdade eu não tinha esperanças de fazer-me ouvir.
– Sim – respondeu Edgar.
– Ele apareceu-me hoje bem cedinho, porém eu o tomei como um lunático.
– E eu, replicou Nelson, encontrei-o esta tarde quando fui à venda comprar cigarros. Confesso que pensei tratar-se de uma brincadeira de vocês. Depois destas primeiras palavras começamos os três a rir como crianças que se preparam para iniciar uma aventura. Logo, porém o nosso riso cessou, pois lentamente, vindo dos lados da cidade, uma figura alta e esguia, envergando o mesmo trajo branco que já conhecíamos, aproximava-se de nós.
Devo dizer que ao ver aquele vulto que se destacava na escuridão da noite, tive ímpetos de voltar ao aconchego dos lençóis. Algo, porém impedia-me de fazê-lo. Eu tinha uma imensa curiosidade de saber como acabaria tudo aquilo. Ao chegar onde estávamos o desconhecido repetiu aquela espécie de saudação e, dirigindose a nós, perguntou:
– Estão preparados? Fizeram tudo aquilo que lhes foi recomendado?
Parece-me que sim, pois do contrário não estariam aqui. Vamos pois. Não tenham qualquer receio, que nenhum mal lhes sucederá. Basta que cumpram todas as instruções que receberem. Sigam-me por favor.

Imediatamente voltou-se e começou a caminhar à nossa frente com um passo decidido. Notei que buscava um caminho que contornava a cidade, levando-nos por uma espécie de trilha. Seguimo-lo os três, e logo ficamos admirados da rapidez de nossa marcha. Nossos pés pareciam deslizar sobre o caminho, e nossos corpos apresentavam uma estranha leveza. Em breve, estávamos passando nas proximidades da cachoeira que se encontra nas cercanias. Eu, que esperava, não sei por que, que ali fosse o nosso destino, fiquei desapontado quando o nosso guia passou pelo local sem prestar-lhe maior atenção e continuou velozmente a caminhar à nossa frente.

Nessa altura, ocorreu-me uma observação singular: apesar de ser noite escura, caminhávamos sem conduzir qualquer luminária, e nossos passos, entretanto, eram seguros, aparecendo à nossa frente todos os pormenores do caminho, como se a lua os iluminasse. Levantei a vista para o céu, e não havia lua e nem estrelas. Era mais um mistério que eu não conseguia entender. Meus companheiros mantinham-se calados e se faziam suas próprias conjeturas, nada diziam. Admirava-me a coragem de que estávamos possuídos. Caminhamos cerca de meia hora, e só então eu me apercebi de que nossos passos nos levavam para um dos paredões rochosos que eu divisara no dia anterior, quando chegáramos à cidade, e que ficam à direita da estrada. Dentro de alguns minutos, chegamos a uma clareira rodeada por três lados de densa vegetação e, pelo outro, por uma extensa parede de granito. Nesse local o nosso guia se deteve. Foi só então que ele se voltou e, encarando-nos, falou:
– Esperemos aqui.
Nenhum de nós pronunciara até então uma única palavra. Parecia havermos perdido a fala, e era de admirar como fora possível ali estarmos, inteiramente confiantes, entregues às mãos de um homem que jamais havíamos visto e que nos conduzia sabe Deus para onde. Em meu íntimo, um leve protesto se esboçava, porém algo mais forte a ele se sobrepunha. Praticamente eu havia perdido a própria vontade, e não passava de um sonâmbulo perseguindo uma sombra fugidia.
Súbito, aquele encanto foi quebrado. Desapareceu aquela espécie de torpor que até então me dominava, e eu voltava, outra vez, a ser senhor absoluto de minha vontade. Fato idêntico se passava com meus companheiros. Edgar aproximou-se de mim e murmurou ao meu ouvido:
– Isto é fantástico! Será possível que iremos mesmo penetrar nesse misterioso mundo de que falam?
– Estou com medo – disse Nelson um tanto assustado – Afinal de contas, eu mal sei porque estou metido nisto.
– Creio que todos estamos com medo – retrucou Edgar – mas já que estamos aqui, vejamos o que vai suceder. De mais a mais, eu sempre esperei ter uma oportunidade destas e não há nada que me faça desistir agora. Concordamos com essas palavras com um assentimento de cabeça. Olhamos para o nosso guia e notamos que ele tinha nos lábios um leve sorriso de zombaria. Talvez lhe repugnassem os nossos sentimentos. Que pensaria ele, naquele momento, sobre nós? Resolvi interpelá-lo:
– Senhor! Qual o vosso nome?
Surpreendi-me tratando-o na terceira pessoa, o que bem denotava o meu estado de espírito. Ali, naquele local solitário, aquela minha arrogância do primeiro encontro, quando me julgava em presença de um desprezível cigano, se havia transformado numa espécie de respeitosa subserviência, da qual eu em absoluto não me envergonho, depois que conheci melhor aquele personagem enigmático. Ele olhou-me longamente antes de responder:
– Já me admirava de que ainda não me houvesse feito essa pergunta. Afinal, todas as coisas devem ter um nome. O meu é Ra-Mu.
– O senhor vive lá em baixo? – perguntei desajeitadamente.
– E por que não? – foi sua resposta, seguida de leve encolher de ombros.

O silêncio voltou a reinar entre nós. Não me animava fazer novas perguntas a Ra-Mu, uma vez que me parecia que ele não estava disposto a sofrer qualquer espécie de interrogatório. Ao nosso redor tudo permanecia quieto, e ouvíamos perfeitamente os ruídos característicos da natureza adormecida. Pequenos roedores movimentavam-se pelas ervas daninhas. Insetos noturnos passavam voando velozmente, e os pirilampos acendiam suas lanternas intermitentes no bosque sombrio. A chuva havia cessado, mas um vento gelado ainda continuava a soprar levemente. Como eu disse, não sentia frio, embora soubesse que a temperatura deveria estar bastante baixa naquela noite.

Uma coruja soltou um grito estridente, assustando-me. Sem querer, levei as mãos ao peito, e qual não foi a minha surpresa ao verificar que não havia qualquer palpitação. Um pânico se apossou de mim e foi quando começou a surgir em meu espírito uma dúvida: tudo aquilo talvez não passasse de um sonho. Sim! Eu estava sonhando um sonho consciente, e só agora é que me apercebia dessa verdade. Tal descoberta tranqüilizou-me. Felizmente todos os eventos que se sucederam não passavam de um sonho, e só uma coisa me intrigava: quando eu havia começado a sonhar? Quando se teria o sonho iniciado? Antes ou depois do encontro com o desconhecido que ali estava? Não sei por que isso me perturbou um pouco, firmou-se, porém, em mim, a convicção de que eu sonhava e de que poderia despertar quando me aprouvesse. Já agora tudo era diferente! Criei alma nova.

A partir daquele instante, resolvi deixar de me preocupar, e o medo, que até então me atormentava, desapareceu em grande parte. No íntimo, porém, eu não tinha certeza de que estava sonhando, e isso é que impedia de me sentir completamente tranqüilo. Após a constatação de que talvez eu sonhasse, senti-me completamente à vontade e disposto a viver todos os lances daquela aventura que me parecia fascinante. Olhei para meus dois companheiros e fiquei por um momento a meditar: Nelson e Edgar, ali ao meu lado, seriam criações de meu sonho ou eles realmente, tal como eu, sonhavam o mesmo sonho e participavam das mesmas emoções? Gostaria imensamente de saber se tal sucedia, porém, naquele instante, não havia maneira de averiguar. Somente no dia seguinte ou depois que despertasse daquilo que eu julgava um sonho, é que poderia interpelá-los e obter confirmação a essa suspeita. Era bem possível que eles estivessem, naquele instante, adormecidos profundamente, tendo outros sonhos, enquanto eu os via ali ao meu lado, criados pelo meu próprio poder mental.

Comecei então a pensar, não sei por quê, se aquelas formas todas, ao meu redor, eram criações minhas. Não estaria eu exercendo inconscientemente aquele poder a que os iogues chamam de “kriashakti”, modelando, na matéria, as formas e os seres ali presentes? Senti aumentar a minha confusão mental diante dessa pergunta e das implicações que traria a sua resposta. Se eu exercia aquele poder misterioso, poderia criar naquele instante outras formas e outros seres? Tentei fazê-lo, porém sem resultado. Tudo continuou na mesma. Ali estava o desconhecido, de pé, ereto, com seus olhos negros brilhando na escuridão de seu rosto. Ali estavam meus dois amigos, aparentemente inquietos, olhando ao redor como quem busca também uma explicação para tudo o que se passava. Ali estavam a montanha, a floresta, os pirilampos, o perfume das flores noturnas, tudo, enfim, como se realmente existissem. Não sei quanto tempo permanecemos os quatro ali parados e de pé, porém, depois o nosso guia nos convidou a sentar no chão, formando um estranho grupo: à frente o “homem de branco”, numa esquisita posição iogue e, logo atrás, lado a lado, nós três, procurando sentarmo-nos da melhor maneira possível.
O guia começou então a entoar em voz muito baixa e profunda, uma espécie de cântico ritmado, numa língua estranha para mim, mas que tinha aquele misterioso zumbido, tal como o emitem alguns insetos, como a cigarra. Uma doce paz começou a envolver-nos, e uma sonolência desceu sobre os meus sentidos até então bem despertos. O mais estranho é que ao som daquela melodia cantada em surdina pelo guia, os nossos corpos começaram a oscilar para frente e para trás, como pêndulos vagarosamente impulsionados. De repente, cessou aquele canto, e o guia, levantando-se vivamente, apanhou uma espécie de erva que crescia ali perto e mandou que a esfregássemos no rosto e no peito. Obedecemos como autômatos e, repentinamente, cessou aquele torpor que nos dominava. Mantivemo-nos contudo sentados, o mesmo fazendo o desconhecido, porém, desta feita, de frente para nós e em completo silêncio. Foi quando ante nossos olhos espantados começou a desenrolar-se uma cena extraordinária.
Na orla da mata surgiu um belíssimo veado, cujo corpo brilhava intensamente cormo que envolto numa luz dourada. Deteve-se um instante, farejando o ar e fitando-nos intensamente por longo tempo. A espaços, escavava o chão com a pata direita e movimentava a bela cabeça, adornada de dois longos chifres esgalhados, baixando-a e levantando-a, ao mesmo tempo que percutia o chão com a pata pontiaguda. Após algum tempo nessa espécie de exame sobre as nossas pessoas, o magnífico animal deu mais uns passos para o centro da clareira, detendo-se ainda uma vez para farejar o ar e o chão, tal como fazem todos os animais de sua espécie, antes de se aproximarem de um lugar que temem.

Na posição em que estávamos nós três víamos perfeitamente o belíssimo gamo, porém o nosso guia não podia vê-lo, uma vez que o animal estava exatamente às suas costas e a uma distância de cerca de 20 metros. No entanto, o misterioso homem parecia dotado de uma extraordinária capacidade de audição, pois tão logo o veado assomou na clareira, ele recomendou-nos silêncio, colocando o dedo indicador sobre os lábios. O veado, após uma ligeira parada e depois de escavar o chão mais uma vez, voltou-se lentamente e, com aquele passo gracioso que caracteriza tais animais, começou a caminhar lentamente pelo mesmo caminho por onde viera, detendo-se, porém, logo adiante, soltando um leve balido e prosseguindo novamente em sua marcha. Ao escutar o som emitido pelo animal, Ra-Mu levantou-se fazendo-nos sinal para acompanhá-lo, e pôs-se a seguir o veado, com moderado passo, formando-se, então, um estranho cortejo: à nossa frente, o veado, que se embrenhava pela floresta; atrás dele, o nosso guia e nós três quase a pisar-lhe os calcanhares. Caminhamos assim cerca de cem metros em fila indiana, sempre seguindo o veado que à nossa frente, se movimentava tranqüilamente, sem se voltar uma só vez.

O meu assombro não tinha limites. Durante anos eu me dedicara à caça e jamais me fora dado ver animal tão magnífico. Tudo nele me parecera perfeito, mormente devido àquela luz dourada que o envolvia. Após curta caminhada, o veado estacou diante do paredão de granito da montanha, no local onde um arbusto crescia entre as fendas, e, esgueirando-se um pouco para a direita, desapareceu de nossa vista. Ao chegarmos ao local, deparamos com a entrada de uma caverna perfeitamente disfarçada pelo arbusto, que era um espinheiro selvagem, densamente fechado. Atrás do mesmo, via-se uma abertura de uns oitenta centímetros de altura por outros tantos de largura, disposta a cerca de cinqüenta centímetros da superfície do solo.

Sem vacilar, o nosso guia esgueirou-se por aquele buraco, para o que teve que agachar-se apoiado sobre as mãos. Num minuto perdêmo-lo de vista. Entreolhamo-nos os três sem dizer palavra durante alguns segundos, mas uma espécie de assovio, saído das entranhas da terra, fez com que nos resolvêssemos. Um a um, penetramos pelo negro buraco e, depois de nos arrastarmos por uns dois ou três metros, sentimos que nossas mãos apalparam areia final e que, sobre as nossas cabeças, se erguia um espaço bem mais alto do que aquele pelo qual fôramos obrigados a arrastar-nos, com a cabeça quase a roçar a parte superior. No interior, reinava a mais profunda treva, e eu, apoiando as mãos na parede lateral, levantei-me cautelosamente, receando bater com a cabeça em alguma rocha que servisse de teto àquela galeria. Felizmente, esta parecia bastante alta, pois mesmo com o braço erguido não consegui tocá-la.

Meus dois amigos e eu, nos mantínhamos comprimidos uns contra os outros, sem saber o que fazer naquelas trevas impenetráveis. Nossos corpos continuavam envoltos naquela espécie de luminosidade, porém a mesma não dissipava a terrível escuridão à nossa frente. O pânico já começava a apossar-se de nós, pois não víamos qualquer sinal de Ra-Mu e, muito menos do veado que havíamos seguido. Das profundezas daquela caverna, soprava uma brisa gelada, impregnada de um intenso cheiro de mofo e miasmas indefinidos. Um bramido surdo e prolongado fez-se ouvir, como se uma fera rugisse naquela escuridão. Nós três não tínhamos sequer coragem de pronunciar uma palavra. Em verdade, estávamos transidos de medo. Súbito, à nossa frente, apareceram dois pontos brilhantes rentes ao chão e começaram a avançar lentamente em nossa direção como duas pequeninas tochas rubras. Pareceu-me que um animal qualquer portava aqueles olhos luminosos. Um instante depois, os mesmos desapareceram sem que soubéssemos realmente do que se tratava. Por fim, quando já nos parecia estarmos ali uma eternidade, Edgar pareceu achar o dom da palavra e sussurrou ao meu ouvido:

– Vamos voltar, meu caro, isto é horrível!
Eu também assim pensava, e o mesmo acontecia a Nelson, cujos dentes castanholavam como se um frio intenso lhe fustigasse o corpo. Estávamos a pique de bater em retirada, quando subitamente, brilhando debilmente, uma luz provinda do interior da gruta, que só então constatamos ser bastante extensa, começou a aproximar-se de nós. Vimos novamente o nosso guia, que vinha ao nosso encontro com aquele seu andar tranqüilo e seu olhar brilhante, trazendo nas mãos uma tocha.
– Sei que devem ter passado maus instantes quando chegaram aqui e não me encontraram – foi ele dizendo à guisa de desculpa – Porém, eu precisava apanhar esta tocha e tomar outras providências.
Por incrível que pareça, a chegada de Ra-Mu encheu-nos de alegria. Já confiávamos nele e o considerávamos como nosso amigo.
– Precisamos agora ter bastante coragem para podermos chegar até a entrada que abre para a quarta cidade – disse ele a seguir – Acabaram de presenciar uma curiosa cena lá no exterior. Aquele veado que nos guiou até aqui é o “totem” ou “animal sagrado”, encarregado desta embocadura. Só ele poderia ter desempenhado o papel de guia para esta etapa final, e eu mesmo estou sujeito às regras desse jogo, conforme lhes explicarei mais tarde. De agora em diante, a nossa viagem assumirá um aspecto inteiramente diferente, e precisamos cercar-nos de umas tantas precauções para podermos percorrer a primeira etapa de nosso caminho. Peço que não se assustem com algumas coisas que irão ocorrer e que confiem cegamente em mim, pois tudo correrá bem se obedecerem fielmente às minhas instruções. Iremos atravessar uma zona perigosa, e devem estar advertidos disso para que não se assustem.

Ao acabar de fazer essas observações, Ra-Mu deu-nos a cada um uma espécie de cera maleável e recomendou-nos que tapássemos totalmente o ouvido. Em seguida, vendou-nos os olhos com um espesso pano preto, recomendando-nos que, durante todo o tempo, recitássemos em voz baixa uma espécie de “mantram” ou “salmo”, e que por nada do mundo soltássemos as mãos uns dos outros. Nelson, que ia na frente, segurava as mãos do nosso guia, seguindo-se Edgar e eu, cada qual preso ao outro pela mão esquerda. Antes de obturarmos os ouvidos, Ra-Mu recomendou-nos não parar de recitar o “mantram” e nem nos deixarmos atemorizar por qualquer coisa que nos impressionasse os sentidos. Com tantas recomendações feitas em tom solene, o medo voltou a apoderar-se de mim, porém consegui dominar-me.

Iniciamos, a seguir, uma das mais tenebrosas viagens que pode qualquer mortal empreender.
Sem nada ver e ouvir, guiados por aquele ser misterioso, começamos a caminhar como bêbados, tropeçando nas saliências e depressões daquelas rochas. A princípio nossa caminhada foi lentíssima, porém pouco a pouco se tornou mais regular, à medida que nós nos acostumávamos a caminhar como cegos.
Depois de alguns minutos, começou para mim e meus companheiros um verdadeiro tormento. Sobre o meu rosto, minhas pernas, meus braços, comecei a sentir estranhos contatos. Viscosos, ásperos, frios, quentes, cortantes como se navalhas me rasgassem as carnes; por todos os lados eu sentia golpes atrozes que quase me faziam gritar de dor. Apesar de tudo eu me mantinha recitando mecanicamente o “mantram”, mais por um impulso inconsciente de pavor do que por qualquer outra razão.

Meus amigos deviam passar pelo mesmo inferno, pois eu sentia a mão de Edgar estremecer e apertar convulsamente a minha. Um cheiro fétido, insuportável, de quando em vez chegava às minhas narinas, como se fora o hálito de alguma fera carnívora e monstruosa que ali por perto habitasse. Em minha imaginação parecia-me ouvir gritos horrendos e lancinantes, perdidos a distância. Não é possível avaliar, em função de tempo e espaço, a duração daquela primeira fase de nossa jornada. O medo que me possuía, a escuridão forçada pela venda nos olhos, e o silêncio, por não poder ouvir, tiraram-me completamente a capacidade de apreciar medidas.

De repente tudo cessou. Os golpes, os cheiros fétidos, os contatos pestilentos, tudo cessou como por encanto. Andamos mais um pouco e recebemos ordem de parar. Um a um fomos libertados das vendas e nossos ouvidos desobstruídos. Ra-Mu sorria complacente à nossa frente, parecendo satisfeito com o nosso procedimento.
Achávamo-nos em uma espaçosa sala abobadada e iluminada por uma tocha posta a um canto e presa numa fenda da rocha. A substância que na mesma ardia desprendia um aroma agradável, como se fora resina de pinheiro. Bem no centro da sala, cujas paredes irregulares estavam cobertas de fuligem negra, havia uma mesa de pedra retangular e dois bancos, também de pedra, dispostos de cada lado da mesma. A sala que, no final de contas, nada mais era que uma espaçosa caverna, tinha a forma também retangular, medindo cerca de vinte metros de comprimento por dez de largura, e numa de suas paredes de menor comprimento estava gravada na pedra, em alto relevo, a figura de um veado em tamanho natural, com inscrições escavadas por baixo da figura. A abóbada tinha mais ou menos seis a sete metros de altura na parte central e descaía em quatro arcos, para cada ângulo da sala.
Nessa abóbada e bem por cima da mesa de pedra, um zodíaco, com 14 signos ao invés de 12, deixava ver, no seu centro, um orifício escuro que a mim pareceu um respiradouro ou espécie de chaminé, pois por ali descia uma corrente de ar que fazia oscilar a chama da rocha e purificava o ambiente. Nosso guia aconselhou-nos a descansar um pouco ali mesmo, e nós nos apressamos a sentar num dos bancos que estavam junto à mesa. A fisionomia de meus companheiros demonstravam a forte emoção de que estavam possuídos e ninguém pronunciava uma só palavra, limitando-nos a contemplar tudo o que estava ao nosso redor. Era evidente que aquele ambiente medonho, iluminado pela luz oscilante da tocha, atuava sobre os nossos nervos, deprimindo-nos.

Ra-Mu começou então a explicar-nos algumas coisas que nos intrigavam, mas que temíamos perguntar-lhe.
– Sei que não foi fácil a travessia, de olhos e ouvidos tapados, que tiveram que fazer – começou ele – Mas, não havia outra solução, sob pena dos senhores enlouquecerem, se tivessem que fazer aquele percurso sem essa proteção.
– Que foi que se passou ao nosso redor enquanto andávamos como surdos e cegos? – perguntou Nelson, já mais animado.
– O nosso mundo tem terríveis guardiões que zelam pela sua inviolabilidade – respondeu Ra-Mu, e prosseguiu – Nossos antepassados tiveram que tomar essa precaução, não porque temessem que um outro homem vindo da superfície aqui penetrasse por acaso, mas sim pelo fato de que temos inimigos poderosíssimos que tudo fariam para destruir as nossas moradas subterrâneas, expulsando-nos e apropriando-se dos segredos e tesouros que as mesmas encerram. Não são os pobres homens vulgares da superfície que nos forçam a tantas precauções, mas sim uma casta diabólica de seres, contra os quais vivemos em perpétua luta desde há milênios, luta essa que muitas vezes empolga os próprios homens lá de cima, sem que, contudo eles tenham consciência desse fato.

Ra-Mu deteve-se por alguns instantes e prosseguiu:
– Antes de chegarem a esta sala tiveram que atravessar, sob a minha proteção, um verdadeiro inferno. Não estivesse eu ao lado dos senhores e nem quero pensar o que lhes sucederia. Seriam despedaçados em poucos segundos, pelos verdadeiros monstros que guarnecem o caminho. Alguns deles tão terríveis, que só de vê-los morreriam de horror. Esses seres, praticamente não obedecem a ninguém que não os saiba domar e, mesmo assim, eles, muitas vezes, ainda tentam desobedecer.
É uma proteção muito eficaz contra certa classe de indivíduos que, movidos pela curiosidade ou por motivos muito mais baixos, tentam invadir este território que lhes está vedado por razões muito especiais. Como devem saber, nem sempre existiram os mundos subterrâneos. Somente depois que alguns deuses se degradaram e caíram na mais abjeta magia negra, ao tempo do continente atlante, chegando ao ponto de ameaçar transformar o resto dos mortais em apenas míseros escravos de seu maldito egoísmo – foi que aqueles que não se deixaram manchar pelo pecado, tiveram que ocultar-se em lugares inacessíveis, a fim de poderem continuar a viver e a manter incorruptível a Sabedoria Sagrada que nos legaram nossos antepassados. Em nossa biblioteca temos muitos livros antiqüíssimos que relatam todas as minúcias desse trágico acontecimento.

O nosso guia calou-se e, mudando de tom, convidou-nos a continuar descansando mais um pouco enquanto ele iria providenciar para que pudéssemos prosseguir. Antes, porém de deixar-nos, Edgar perguntou-lhe:
– Esta é a única entrada para o lugar a que nos leva?
– Não – respondeu Ra-Mu
– Existe uma outra não muito longe desta e é até mais fácil de percorrer, pois não está guardada tão fortemente. Não é possível, porém, introduzir por ali ninguém chegado de fora como os senhores. Essa outra entrada é utilizada somente por aqueles que, bastante credenciados, têm livre acesso ao nosso Santuário. Está, contudo, tão disfarçada e é de tal modo infranqueável para os não iniciados nos grandes mistérios, que só de raro em raro é utilizada. Por ela é que transita o nosso grande Senhor, bem como aqueles que mais de perto o acompanham e servem.

Em seguida, sem mais dizer palavra, afastou-se para uma das extremidades da sala. Ao chegar diante da efígie do veado esculpida na parede, vimo-lo levar as mãos juntas ao peito, como se fosse orar, e ouvimo-lo pronunciar em voz baixa algumas palavras. Após, tirou de dentro da camisa qualquer coisa que irradiava uma luz escarlate e com ela tocou a parede. Imediatamente começamos a ouvir um surdo rascar de pedras que pareciam mover-se. A figura do veado estremeceu, e lentamente um imenso bloco de pedra começou a girar até deixar visível uma ampla abertura.
Ra-Mu voltou-se então para nós e convidou-nos a acompanhá-lo. Entramos os quatro por aquela abertura e achamo-nos em uma sala quase idêntica à primeira, porém sem a mesa e o zodíaco, o qual era ali substituído por uma grande rosa, que brilhava em tons de ouro velho, no centro do teto. A tocha fora substituída aqui por uma candeia na qual um óleo perfumado desprendia um aroma agradabilíssimo que embalsamava todo o ambiente. Arrumados a um lado da parede, viam-se vários jarros de pedra negra.
Logo após o nosso ingresso nessa outra sala, a abertura por onde havíamos passado voltou a fechar-se, desta vez sem a aparente intervenção do nosso acompanhante. Depois de fechada foi que notamos que na mesma também estava reproduzida a efígie do veado que víramos na outra face.
Ao ver aquele imenso molhe de pedra fechar-se às nossas costas, fui tomado de uma espécie de receio, pois até então, ao que me parecia, não havíamos passado por nenhuma porta e, desse modo, eu tinha a impressão de que sempre me seria fácil voltar para o exterior. Depois, lembrei-me quão inúteis eram os meus receios, ao recordar aquela travessia de olhos vendados que há pouco havíamos feito.
Detivemo-nos por um instante contemplando o novo cômodo. Nada havia nele que nos chamasse a atenção à primeira vista, porém indubitável que o mesmo tinha qualquer coisa que o distinguia grandemente da primeira sala; eu, porém não atinava com o que poderia ser. Dentro de pouco tempo foi que comecei a compreender: a sensação que me empolgava não era física, mas sim, alguma coisa impalpável ou imaterial, que eu sentia envolver-nos com um misterioso eflúvio, que, ao mesmo tempo que nos era agradável, era-nos também deprimente, constrangendo-nos.

Ra-Mu se havia afastado de nós para um dos extremos da sala, depois de recomendar-nos que ficássemos bem no seu centro. À medida que os minutos passavam, uma incrível modificação se operava em nosso interior. Era como se uma parte de meu ser, de minha memória, se fosse apagando lentamente, enquanto que a outra permanecia bem nítida, viva, e, como direi, mais pura. Foi quando comecei a ficar horrorizado com o que diante de meus olhos se passava. De meus companheiros começavam a sair, como se fossem imensos vermes, formas estranhas e indefinidas, com tonalidades vermelhas e sombrias, que se enroscavam, agitavam e, após formarem uma horrível massa turbilhonante, eram atraídas para os vasos de pedra que antes notara junto a uma das paredes. Ao chegarem aos vasos, aquelas formas neles penetraram, silvando como se fossem serpentes enfurecidas. O mesmo que se passava com meus amigos, passava-se também comigo, e à medida que aquela “coisa” saía de mim, começava a sentir-me estranhamente mais disposto, meus pensamentos ficavam mais claros e era como se me tivessem aliviado de grande peso. Meus dois amigos tinham a esta altura adquirido uma luminosidade diferente, de uma beleza indescritível.

Foi somente após essa operação incrível, que o nosso guia, até então isolado de nós em um recanto afastado, aproximou-se novamente.
– Que se passou conosco? – apressou-se a indagar Edgar.
Ra-Mu olhou-nos a todos longamente, e seus olhos haviam adquirido uma doçura que até pareciam os olhos de um pai a contemplar seus filhos travessos. Sorriu para Edgar e respondeu:
– O senhor e seus companheiros acabaram de perder algumas imundícies que trouxeram lá de cima. A ela todos os que vivem na superfície estão sujeitos. São as mazelas próprias do seu mundo. Quem lá vive não consegue libertar-se dessa sujidade, qualquer que seja o seu grau de adiantamento na senda evolutiva.
Parou um instante como se estivesse procurando palavras adequadas para fazer-se melhor entender. Depois continuou:
– Acabaram de tomar uma espécie de banho, não com água e sabão, mas com uma outra espécie “ingrediente” ou fluido, emanado do óleo que esta candeia desprende e que foi preparado, por sua vez, por processos especiais. Esta sala também está preparada adequadamente para este fim pelos nossos sábios. Parou por alguns instantes a sua explicação e, aproximando-se dos vasos de pedra, tampouos cuidadosamente. Em seguida, recomeçou:
– Na superfície da Terra onde vivem, existe uma condição muito má para o homem, criada por ele próprio. Enquanto nas cidades, diariamente os governantes mandam coletar o lixo e o incineram ou transformam em adubos, varrem as ruas, limpam os esgotos etc., os homens, inconscientemente, acumulam uma outra espécie de “lixo”, muito mais perigoso, porque é invisível aos olhos comuns. Nessa espécie de imundície, caminham todos submersos inteiramente, respirando-o, comendo-o, bebendo-o e sendo por ele contaminados da maneira mais atroz ao ponto de modificarem seus hábitos, seus pensamentos, suas ações. Esse “lixo” criado pelos homens é algo de horrível como acabaram de ver, e bastava que pudessem livrar-se dele, para que suas vidas já fossem bastante melhoradas. É ele quem contamina o homem de muitas doenças do corpo e da alma. É por causa desse lixo, que muitos crimes são cometidos e muitas tragédias ocorrem e, o que é mais triste ainda, o homem o ignora e não tem meios para se proteger contra o seu malefício. É a maior chaga a corroer o corpo enfermo de toda a pobre humanidade.
– Quer dizer que foi esse “lixo” que acabou de sair de nosso corpo? – interrompeu Nelson.
– Exatamente! – respondeu Ra-Mu – Acabaram de perder um companheiro que traziam desde o berço. Uma verdadeira crosta de imundície acaba de sair de seus corpos. Estão agora livres dessa mazela, embora todas as demais qualidades de suas almas estejam intactas. Nada em suas personalidades foi tocado. Estão agora, apenas, com aqueles defeitos próprios da alma de cada um, porém não mais influenciados por aquela espécie de parasitas que traziam.
– E qual a causa desse “lixo” de que o senhor falou? – insistiu Nelson.
– Por ignorar o mundo fabuloso que o envolve e no qual tem sua vida, o homem acaba tornando-se vítima dessa sua ignorância. Todos os pensamentos, palavras e ações que o homem produz, geram efeitos tão reais como quaisquer outros que ele pode ver. Ao pensar, falar e agir, o homem está constantemente emitindo uma série de vibrações mais ou menos poderosas, que agitam um tipo de matéria sutilíssima, mais sutil ainda do que as ondas de rádio ou de televisão, matéria essa da qual é constituída grande parte do corpo humano e todas as coisas da Natureza. Pois bem: a cada pensamento, palavra ou ação, corresponde um efeito nessa massa fantástica de matéria, e a qualidade desse efeito está ligada à agitação que o produz. Assim, vive o homem submerso numa série infinita de ondulações e de criações, algumas tão terríveis, que, se lhe fosse dado vê-las, talvez morresse de medo.
Para que melhor me entendam, eu darei alguns exemplos: Um pensamento bom produz ondas ou vibrações de natureza diferentes de um pensamento de cólera. Uma palavra tranqüila e de afeto produz um efeito diferente de uma praga ou palavra de ódio. Mas, todas elas criam por algum tempo uma forma viva nesse mundo de matéria sutilíssima de que lhes falei. Cada ser humano pode ser comparado a uma estação de rádio, funcionando sem parar e emitindo os mais diversos sons. Podem bem imaginar que pandemônio não é aquele reinante numa grande cidade ou num aglomerado humano qualquer. Cada um toca sua música particular, ao mesmo tempo que recebe o impacto da música de todos os outros. É uma coisa horrível quando alguém consegue captar, ao menos por instantes, toda essa pavorosa orquestração. Com o passar do tempo, sobre os homens começa a acumular-se uma grande quantidade dos resíduos deixados ao acaso pelos seus semelhantes, e como em a Natureza nada se cria, nada se perde e tudo se transforma, como sabiamente disse Lavoisier, essas criações terminam sendo absorvidas e transformadas pelos próprios homens, que muitas vezes, ou melhor, quase sempre, são moldadas pelas vibrações que lhes são mais afins. É comum o homem ser assaltado por pensamentos que, em verdade, não são seus. Eles vêm de fora, do meio ambiente, e, captados pelo cérebro, terminam por parecer terem ali nascido, quando, em verdade, isso não sucede. Muitos crimes têm sido cometidos dessa maneira. Homens em cujo coração germina a semente do ódio absorvem as vibrações de ódio que os rodeiam e acabam perdendo o controle de sua vontade, quando a sobrecarga é tremenda. Os seus psiquiatras e psicólogos deveriam ter sempre presente esse fato, ao tratar seus doentes. Ninguém está isento dessa ação indireta ou, melhor, inconsciente dos demais. Quantas vezes, em meio de um deleite de ordem espiritual, os homens não são assaltados por pensamentos opostos e desviados de seus supremos alvos?
Ra-Mu calou-se e contemplou-nos ainda por algum tempo, como se nos examinasse mais minuciosamente agora, depois daquilo que eu considero uma depuração. Em seguida, sacudiu lentamente a cabeça e, como falando consigo mesmo, disse:
– É, não estão de todo mal…
Em seguida, mudando repentinamente de atitude, continuou:
– Ainda nos falta vencer mais uma etapa de nosso caminho. Aviso-lhes que terão ainda muitas surpresas e que precisam confiar em mim para que cheguemos ao nosso destino. Coragem e confiança é o que lhes peço. O caminho que percorremos, já antes foi trilhado por outros homens sem a companhia de ninguém que os guiasse como sucede com os senhores. Devem ter ouvido falar em Iniciação e como esta se processava nos templos egípcios e gregos, sem falarmos na Índia, Tibete etc. O discípulo sozinho tinha que vencer inúmeras provas de coragem e decisão. Este itinerário foi preparado para isso e ainda serve aos mesmos fins. De raro em raro, aqui nos chegam esses verdadeiros heróis depois de uma longa preparação nos vários centros espalhados na superfície da Terra. Os senhores estão gozando de um raríssimo privilégio por haverem encontrado Aquele cuja vontade está cima de todas as regras, pois ele é o senhor dessas regras.
– Ele os carrega sobre os ombros poderosos e lhes confere uma tal soma de privilégios que estão longe de poder avaliar. É impossível dizer-lhes mais do que isto no momento. Não podem compreender, mas a verdade é que por trás de suas pessoas se ergue um Poder tão imenso, uma Vontade tão soberana, que a Ela nada se pode negar. Suas ordens não são passíveis de discussão e suas determinações são irrevogáveis, pois Ele é o Rei deste mundo e o intérprete da Lei que rege o Universo em que vivemos. Seu saber não tem limites, e mesmo aquilo que aos demais pode parecer um absurdo, ante os Seus Olhos, que vêem muito além do que os nossos olhos podem contemplar, tem sua razão de ser. A Ele foi dado o direito de eleger, mesmo entre os seres mais abjetos, aqueles que Ele desejou para formar a sua corte, pois Ele sabe por que assim o quis.
Ra-Mu, enquanto falava, trazia no rosto uma estranha exaltação mística que a todos nós impressionou. Olhamo-nos um tanto encabulados e guardamos conosco nossos próprios pensamentos. Aquele homem que, a cada momento, crescia aos meus olhos pela sua maneira de falar e agir, já não se me afigurava um estranho. Um elo se estabelecia entre nós e ele. Era como se fôssemos crianças e ele nosso pai ou tutor.
Ra-Mu afastou-se para um dos extremos da grande sala e repetiu a misteriosa operação que antes já havíamos presenciado fazendo abrir na parede uma outra passagem secreta. Chamou-nos, em seguida, para junto de si e começou a instruir-se sobre o nosso próximo passo:
– Por esta passagem é que chegaremos ao nosso destino. Terão que enfrentar mais uma dura prova: saltar dentro deste fosso e cair em queda livre até o seu extremo inferior. Não tenham medo, pois nós estamos sob a proteção de determinados tipos de entidades que os senhores desconhecem. Elas é que ampararão a nossa descida. Lá na superfície, os senhores conhecem-nas pelo nome de Sílfides. Desta feita, nossas posições se inverterão: os senhores terão que ir na frente, pois não quero arriscar-me a que, no último instante, falte a coragem ao que ficar aqui, e isso poderá causar-lhe um terrível dano. Vamos, pois. Qual dos senhores irá primeiro?
Aproximamo-nos da abertura e lançamos um olhar assombrado para uma outra, muito negra, que, semelhante a um poço, descia para as profundezas da terra. Lá do fundo subiu até nossos ouvidos um som indefinido. Meu coração palpitava e, desta feita, eu o sentia. Um medo terrível se apossava de mim. Olhava para meus amigos e eles olhavam-me. Por fim, Edgar ofereceu-se para ir na frente. Olhei-o apiedado. Na certa, ficara louco!
Sem dizer uma só palavra e como que hipnotizado, Edgar aproximou-se da abertura e atirou-se de pé naquela espécie de chaminé ou túnel que se perdia lá para baixo. Não me contive e aproximei-me da borda do mesmo, para olhar.
Foi quando algo sucedeu: inadvertidamente tropecei numa saliência da rocha e, perdendo o equilíbrio, despenhei-me atrás dele. Um grito de pavor escapou-se de meus lábios e ecoou até perder-se sei lá por onde. Eu caíra mais ou menos de cabeça para baixo, e qual não foi minha surpresa ao sentir que não estava só e desamparado. Alguma coisa me sustinha como se uma espécie de vento amortecesse a minha queda livre, ao mesmo tempo em que meu corpo assumia a posição vertical. Tinha a vaga impressão de que mãos invisíveis me seguravam e em torno de mim ouvia um leve ruído como se asas misteriosas adejassem por perto.
Minha descida ou queda por esse mundo de sonho foi muito longa, talvez devido a uma certa lentidão com que ela se processava. Não sei dizer se foi de apenas alguns metros ou se atingiu a centenas. A escuridão que me envolvia não me oferecia pontos de referência pelos quais eu me pudesse guiar. O pavor que sentira, ao ver-me projetado naquele abismo, diminuiu grandemente, mas nem por isso eu me sentia menos angustiado, ao imaginar o que me esperaria no fim desse caminho. Não sabia de meus companheiros e nem de nosso guia.
De repente, senti-me como que abandonado por aquela força invisível que me amparava, e tive a sensação de que agora me despenhava em grande velocidade. Em poucos minutos submergia num mergulho violento dentro d’água. Logrei vir à tona e verifiquei que estava dentro de uma espécie de rio subterrâneo, cuja correnteza me arrastava velozmente. Uma espécie de redemoinho colheu-me de chofre, e imediatamente fui atirado para a margem, repousando em um lugar seguro e enxuto. Foi então que deparei com Edgar logo ali próximo, com os braços cruzados sobre o peito, numa atitude quem está realmente molhado. Aproximei-me dele e fui logo indagando:
– E agora, meu caro, que ainda nos estará reservado depois deste mergulho? Deus meu! quantas dificuldades já tivemos que vencer!
– É… meu caro – respondeu ele no mesmo tom – Nunca pensei que fosse tão penosa a descida a estes mundos subterrâneos.
Eu sempre imaginei que a coisa se fazia facilmente, apenas empurrando uma porta de pedra. Agora vejo que não é nada disso e compreendo por que ninguém aqui penetra com facilidade. Mal acabávamos esse diálogo, ouvimos o barulho de um corpo na água. Era Nelson que chegava por sua vez. Bracejava apavorado, tal como fazem aqueles que não sabem nadar. Foi, entretanto, colhido pelo mesmo redemoinho e lançado à margem, tal como nos havia sucedido. Corremos para ele e o ajudamos a erguer-se. Esfregando as mãos nos olhos, expelia restos de água pela boca e pelo nariz. Seu rosto mostrava visíveis sinais do pavor que o possuía. Ao ver-nos, sua fisionomia alegrou-se, e chegou mesmo a esboçar um leve sorriso. Foi logo dizendo:
– Caramba! Que mergulho terrível para quem não sabe nadar. Nem sei como ainda me encontro vivo. Ah! se seu pudesse dar o fora e voltar para a minha cama! – lamentou-se. Esperávamos ansiosos por Ra-Mu e qual não foi nossa surpresa ao verificar que ele não dava sinal de si. Que teria acontecido? Por que ele não nos seguira? Será que nos tinha abandonado? Essas perguntas brotavam de minha mente ao ver que ele não aparecia.
Passaram-se alguns minutos nessa expectativa e já começávamos a ficar outra vez apavorados. Ali, sozinhos no interior da Terra, sentíamos uma profunda angústia. Olhei ao redor, e foi então que me apercebi do local em que estávamos. Era também uma caverna, porém de forma circular, com o teto bastante alto. Dava para uma espécie de túnel que se estendia em linha reta por uns cem metros, e em cuja extremidade brilhava uma luz semelhante à do dia.
Tanto a caverna que ocupávamos, como túnel ou corredor, estavam perfeitamente iluminados por uma espécie de luz fluorescente, porém não havia lâmpadas visíveis em parte alguma. A luz emanava do próprio ambiente.
Estávamos sem saber o que fazer diante da situação em que nos achávamos.
– Creio que, depois de todas as peripécias por que passamos, fomos novamente colocados na face da Terra – disse Edgar – Este túnel, na certa dá para fora. Olhem para a sua saída. Não estão vendo a luz do dia?
– É… – disse Nelson – acontece que ainda não é dia lá em cima.
A menos – ponderou – que tenhamos gasto a noite inteira percorrendo o caminho até aqui.
– Não – disso Edgar – Não creio que tenhamos demorado tanto. Acho que devemos verificar por nós mesmos o que há no fim deste corredor.
– Mas, e Ra-Mu? – indaguei – Será que ele não vem juntar-se a nós?
– Sei lá – respondeu Edgar – Não podemos é ficar aqui à espera de que algo suceda. Mal acabou de pronunciar essas palavras, quando notamos que um vulto ingressara no túnel e caminhava em nossa direção. Sua silhueta se recortava nitidamente de encontro à claridade que lhe ficava por trás e que era mais brilhante que aquela que iluminava o resto do corredor. À medida que se aproximava de nós, verificamos que vinha envolto numa espécie de túnica flutuante, muito alva. Como fascinados e com o coração aos saltos, observávamos a aproximação daquela visão, sem saber o que pensar.

Dentro de poucos instantes tínhamos diante de nós um desconhecido, muito parecido com Ra-Mu, porém um pouco mais baixo e com uma fisionomia aparentando mais idade. Saudou-nos da mesma maneira que fizera Ra-Mu quando me abordou aquela manhã na praça.
Em seguida começou a falar-nos, com aquele sotaque interessante que parecia peculiar a todos os habitantes daquele lugar misterioso.
– Sejam bem-vindos – disse em tom paternal
– Não se assustem, pois estão em perfeita segurança. Fiquem tranqüilos que nada lhes sucederá de mal – reforçou ele vendo que estávamos realmente amedrontados.
– Não devem continuar com esse medo que os perturba, pois do contrário terá sido inútil a vinda dos senhores até aqui. Para acabar com esse sentimento, temos uma agradável surpresa para os senhores. Estou certo de que irão gostar muitíssimo dela. Venham, por favor.
Enquanto o desconhecido falava, examinei melhor a sua pessoa. Era um homem idoso, forte, com os mesmos caracteres fisionômicos de Ra-Mu. Tinha, contudo, em sua pessoa, qualquer coisa muito mais venerável que o nosso amigo anterior. Seus olhos, embora grandes e brilhantes, não tinham a mesma dureza, e sua voz era muito mais doce e amiga do que a do nosso guia. Trajava uma ampla túnica branca que lhe chegava até quase os pés, que não estavam calçados com qualquer tipo de calçado. Usava barba, tal como Ra-Mu, e tanto esta, como seus cabelos, eram do mesmo matiz negro azulado.
Eu não estava, todavia, disposto a obedecer sumariamente àquele desconhecido, surgido sabe Deus de onde. Assim é que me atrevi a formular-lhe algumas perguntas:
Um momento, senhor! – disse-lhe à guisa de introdução – Gostaríamos de saber o que foi feito de Ra-Mu, ou seja, aquele que nos guiou até aqui.
– A função dele já terminou – respondeu nosso novo guia – Ra-Mu tem suas tarefas a desempenhar, assim como cada um de nós também tem as suas.
Ele ocupa-se de missões como essa que desempenhou trazendo-os até aqui. Agora cabe a mim levá-los até onde devem ir. Chamo-me Asbal, e podem confiar em mim como confiaram em Ra-Mu.
Em seguida, começou a andar de volta pelo extenso corredor, e nós o seguimos. Ao chegarmos ao seu final, foi que se esclareceu o mistério daquela claridade que parecia ser uma saída para o exterior quando vista de longe. Desembocamos num grande cômodo circular, semelhante à nave de uma igreja de grandes proporções. Ali, uma luz difusa iluminava intensamente todo o ambiente. Não existiam lâmpadas visíveis, e essa luz parecia brotar das paredes e do teto, como se tudo fosse capaz de emiti-la. Esse cômodo não mais parecia uma caverna, pois as suas paredes eram lisas como o mármore, e o seu teto estava trabalhado em alto relevo, apresentando várias figuras estranhas, uma mistura de animais e de homens.
Chamou-me particular atenção um curioso grupo que ocupava o piso do salão, formando um círculo bem em seu centro.
Ali estavam representados sete animais dispostos em torno de um javali que ocupava a parte central. Lembro-me de que alguns desses animais eram a Seriema, o Lobo, uma Cobra cascavel, um Veado, uma Anta ou tapir. O Javali, que ocupava o centro, trazia na cabeça uma espécie de coroa. Um grande painel, representando um ancião de longas barbas, sentado em um trono e tendo na destra uma espada com a ponta voltada para cima, e na mão esquerda um globo encimado por uma cruz, ocupava um lugar de destaque numa das paredes laterais. Detivemo-nos contemplando aquela belíssima figura pintada a óleo, e Asbal, vendo o nosso interesse, achou que deveria dar-nos alguma explicação.
– Esta sala nós a chamamos Sala do Manu. É o primeiro vestíbulo em que penetra aquele que se inicia em nossos mistérios. Através das peripécias por que os senhores tiveram que passar, o candidato à Iniciação em nosso colégio, aqui chega como Peregrino e começa a ser instruído em nossa sublime doutrina. Até há bem pouco tempo, esta sala tinha um outro nome, porém o nosso Augusto Senhor, modificando as regras de nossa Fraternidade, obrigou-nos também a adotar outros símbolos. Além desta sala, existem mais três, cada qual com um determinado número de símbolos, que devem ser estudados enquanto o candidato vai vencendo gradualmente os diferentes estágios do conhecimento. Nós não iremos por essas salas, que se chamam Sala de Yama, Sala de Karuna, e Sala de Astaroth. Não teremos tempo para nos determos na visita às mesmas. Daqui iremos para nossa biblioteca, onde, segundo lhes prometi, terão uma agradável surpresa.
Antes, quero dizer-lhes que os senhores percorreram até agora, o roteiro que deverão percorrer durante os próximos séculos todos aqueles que desejarem iniciar-se em nossos conhecimentos mais secretos. Aqui farão uma Iniciação real e não apenas simbólica, conforme se faz em certas instituições da superfície da Terra, ligadas a nós no passado. Em verdade eu lhes digo que a Iniciação terá que ser feita em sete etapas diferentes, em outros tantos Santuários semelhantes a este que irão visitar. Lá na superfície existem mais seis lugares que, juntamente com a cidade de Maria da Fé, de onde vieram, representam externamente aquilo que se passa em suas entranhas. Esse lugares são: Itanhandú, Aiuruoca, Carmo de Minas, Conceição do Rio Verde, Pouso Alto e São Tomé das letras. No centro desse magnífico sistema, repousa a oitava cidade, maravilha das maravilhas, que tem o sacrossanto nome de Caijah e que fica ali bem próximo da cidade de São Lourenço. Cada um desses Santuários tem a sua tônica própria e é regido por um Ser de tamanha Hierarquia espiritual, que se Lhes pode denominar de Deuses. A história de cada um desses lugares, contudo, é velhíssima, e nem sempre estiveram ligados por aberturas com a superfície. O povo que os habita tem uma história inverossímil para os senhores que estão acostumados à descrença. A verdade, porém, é que data de milênios o tempo em que para eles foram conduzidos. Demoramos ainda alguns minutos naquele belo recinto contemplando-o, e obtivemos de Asbal a explicação de todos os símbolos que ali se viam. A respeito dos animais que rodeavam o Javali, ele nos explicou que aqueles eram os “totens” ou animais sagrados de cada uma das “embocaduras” ou “aberturas” que conduziam às sete regiões ou cantões subterrâneos que se dispunham em torno do que correspondia à São Lourenço. O Javali, ocupando o centro do painel, estava ligado àquela cidade, apresentava os símbolos mais rudimentares com os quais deveria o mesmo familiarizar-se. A seguir, explicou-nos a doutrina que diz respeito aos totens, que é também conhecida pelo nome de totemismo. Mostrou-nos como cada povo tem sua história ligada a um vegetal e a um animal.
– Em todas as épocas, sempre que um ramo racial surgiu, veio trazendo consigo um animal e um vegetal – disse-nos – Os árias, ao descerem do planalto central da Ásia para se formarem nas planícies do Ganges, levavam consigo o Trigo e o Búfalo; os Incas traziam o Milho e a Lhama; os Tupis, o Tapir e a Mandioca; as tribos do deserto, a Tamareira e o Camelo, e assim por diante. Em escala mais reduzida, todas as regiões do globo têm sempre uma planta a elas ligada, bem como um animal. Esse é um dos mistérios ainda não estudados pelos homens. A verdade é que há uma íntima ligação entre os três reinos da natureza, e um misterioso fio estabelece essa relação entre vegetais, animais, homens e deuses. Asbal, em seguida, encaminhou-se para uma porta disfarçada na parede, e, abrindo-a, convidou-nos a acompanhá-lo. Percorremos em sua companhia um longo corredor talhado na rocha e perfeitamente iluminado por aquela luminosidade desconhecida.
Saímos em um imenso salão, ao longo de cujas paredes arrumavam-se grandes estantes, repletas de livros e manuscritos que me pareceram antiqüíssimos. Mas o que logo nos chamou atenção foram sete grandes mesas forradas de uma espécie de veludo negro, e sobre as quais estavam outros tantos livros também de grande tamanho. As mesas estavam dispostas em fila e afastadas umas das outras cerca de cinco metros. Somente o livro da quarta mesa estava aberto, e sobre ele jorrava da abóbada daquela galeria imensa um feixe de luz dourada, o qual, por sua vez, provinha de um imenso olho situado no centro de um triângulo. Olhei interrogativamente para Asbal, e ele entendeu a minha muda pergunta:
– Esse é o Livro da Lei desta “embocadura”. Nele estão escritos não só a história deste lugar e de seu povo, como o código que preside a sua vida e, ainda, as regras que disciplinam a matéria iniciática que aqui é ministrada.
Aproximando-nos respeitosamente daquele imenso livro, notamos que suas folhas eram metálicas, porém me pareceram bastante delgadas. Não pude identificar de que metal eram confeccionadas. O Livro, aberto, media cerca de um metro de comprimento por metro e meio de largura. Estava escrito numa linguagem simbólica ou hieroglífica. Além daquilo que me pareceram letras, possuía outras gravuras coloridas.
Além das mesas, havia uma estátua de pedra negra que logo chamou a nossa atenção. Notando nosso interesse, Asbal encaminhou-se para ela e nós o seguimos. Era uma estátua maravilhosa: representava um jovem de rara beleza, esculpido em pedra negra, tendo ao lado um veado esculpido em pedra da mesma cor. O jovem estava coroado de louros e trazia como vestimenta uma espécie de calção justo, enquanto o busto estava descoberto. Um dos seus braços erguia-se até a altura do ombro, e o antebraço, formando ângulo reto com o braço, erguia-se acima da cabeça, A mão, num gesto displicente, estava ligeiramente fechada, e os dedos indicador e médio apontavam para o alto. A outra mão pousava acariciadora no pescoço do veado, o qual tinha a cabeça voltada para cima e olhava fixamente para o rosto do jovem.
O conjunto era de uma perfeição artística notável, quase real. A coroa de louros era dourada, o que estabelecia um vivo contraste com a cor negra da pedra. O jovem e o animal estavam colocados sobre um pedestal de pedra, porém de cor mais clara. Ficamos a contemplar aquela peça artística em silêncio, examinando-a mais detidamente. Por fim não me contive e interroguei:
– De quem é a estátua?
Asbal pensou por um instante e depois começou a explicar:
– Até o ano de 1789, em seu calendário, ano em que foi aberta para o exterior esta embocadura, essa estátua esteve na praça de uma cidade em ruínas, aqui no Brasil. Foi vista ali por uns poucos aventureiros que procuravam minas de ouro. Naquele ano foi trazida para cá. Nós a resgatamos, e o que mais admira é que se tenha mantido intacta através dos milênios que decorreram desde a sua construção. A história do personagem que aí vêem é maravilhosa. Ele viveu há cerca de um milhão de anos em uma cidade hoje totalmente desaparecida, mas que, em sua época, foi uma das mais bonitas. Pertencia a uma poderosa nação que durante séculos dominou o mundo. Os senhores chamam a esse continente, ou nação, de Atlântida, outros a chamam de País de Mu, outros, ainda, de Kitesh, embora as escrituras sagradas lhe dêem o nome de Kusha. Essa nação foi destruída pelas forças telúricas há milênios, e esse terrível acontecimento provocou uma série de anomalias que ainda hoje afligem a humanidade. O eixo terrestre inclinou-se nessa altura, 23 graus e 27 minutos sobre a eclítica, passou a ter as quatro estações, ou seja, verão, inverno, outono e primavera. Também os homens, em conseqüência da modificação do meio em que viviam, passaram a ter quatro temperamentos diferentes: sangüíneo, bilioso, linfático e nervoso, embora nem sempre seja fácil distingui-los, uma vez que sempre estão mais ou menos baralhados. Há, contudo, a predominância de um deles, que dá a tônica do indivíduo. Com o desaparecimento da grande nação, restaram espalhados por todo o globo fragmentos de sua cultura e de seu povo. Alguns desses núcleos floresceram ainda durante vários séculos, outros, porém, em breve entraram em decadência e degeneraram, voltando à condição mais baixa de bárbaros. Esse terrível acontecimento está simbolizado em um dos livros muitos lidos na superfície, que é a Bíblia. Ali, Moisés, retirando-se do Egito à frente de seu povo, representa as migrações que se fizeram antes do desastre, e o próprio nome de Moisés, significando “o salvo das águas”, diz mais do que qualquer outra explicação, pois em verdade a Atlântida, abalada por fogos subterrâneos, terminou sendo tragada pelas águas do mar, e seus restos ali repousam esquecidos dos homens. Outra alegoria que se refere ao fato é a lenda da Torre de Babel, quando se estabeleceu a confusão das línguas. O que houve, em verdade, foi a mistura de povos que não deveriam misturar-se, uma vez que, oriundos de troncos raciais primitivos que jamais deveriam mesclar-se, com a confusão que se estabeleceu naqueles dias remotos, ligaram-se entre si, engendrando com isso todas as taras e idiossincrasias que flagelam o corpo doente da humanidade. Tudo abastardou-se e veio o caos. Foi nessa época que surgiram os mundos subterrâneos, único lugar onde seria possível preservar a Sabedoria Iniciática das Idades, da profanação cruel a que estava sujeita por parte de deuses que caíram, perdendo a sua condição celeste. Impossível relatarlhe mais pormenores acerca de tudo aquilo que desabou sobre a humanidade como conseqüência do que acabo de lhes falar. Fazendo uma pausa, Asbal, depois de contemplar mais uma vez a estátua, voltou a falar:
– Esse jovem que aí vêem, por ocasião do cataclismo que destruiu o seu país, governava uma cidade que se encontrava no coração do Brasil. Naquele tempo, outra era a geografia deste continente. Orgulhoso de sua estirpe deixou-se arrastar pelas forças sombrias que empolgavam os seus contemporâneos, e pagou caro a sua revolta contra os ditames da Boa Lei. Chegou, porém, o dia em que se redimiu de seus erros, depois de várias encarnações, as mais dolorosas. Hoje ele vive entre nós e governa este cantão. Sua beleza espiritual ganha pouco a pouco o esplendor primitivo. Asbal calou-se e mostrou desejo de que o seguíssemos. Começamos a caminhar. A biblioteca em que nos encontrávamos era monumental: estendia-se por mais de quinhentos metros. Havia lugares adequados à leitura, constituídos de mesas bem compridas e de bancos que as ladeavam. O silêncio reinava naquele recinto.
– O que contém esses livros?
– indagou Nelson. – As nossas bibliotecas, embora contenham livros de todos os matizes, são mais ou menos especializadas. Temos de tudo; porém, com mais profundidade encontrarão assuntos ligados à Mecânica, tanto aplicada como em sua forma mais transcendente. Como sabem, a Mecânica é a ciência das leis do Movimento e do Equilíbrio. Seu estudo é, portanto, de suma importância para o homem. Estudando as leis do movimento e do equilíbrio, chega-se às leis da harmonia universal. A Mecânica celeste é um dos estudos mais profundos dessa ciência maravilhosa. Por ela aprendem-se o movimento dos corpos celestes, a precessão dos equinócios e dos solstícios, o fluxo e o refluxo das marés oceânicas, bem como aquelas que se produzem em outros estados de matéria, as quais os cientistas da superfície ainda ignoram a existência, tais como aquelas que ocasionam as chamadas “manchas solares”. Nenhum iniciado do primeiro grau pode ignorar essa ciência, pois que ela está intimamente ligada ao estudo das energias universais, em seus movimentos pendulares cíclicos e sua relação com todos os seres. No homem também existem movimentos que devem ser estudados para a obtenção do equilíbrio que é a meta final da evolução, uma vez que desaparecendo os movimentos causados pelas dualidades ou antagonismos, se chegará ao equilíbrio perfeito, que é um estado somente alcançável em futuros sistemas de evolução. A manifestação universal e, concomitantemente, a evolução dos seres, começou quando eles se desequilibraram, ou seja, quando as leis da harmonia foram quebradas. A partir do momento em que Matéria e Espírito, saindo da Unidade em que se mantinham, se polarizaram, surgiram os universos e os seres. Ao voltarem àquela Unidade, cessará a evolução, deixará de existir a Roda de Sansara, que é a expressão da Roda da Vida, ou, se o quiserem, do renascimento e morte de todas as coisas. Como vêem, a posse desta ciência é indispensável a todos aqueles que desejam entrar na posse da Ciência das ciências, que é a Magia.
Asbal deteve-se ante um movimento de surpresa de Nelson, e em seguida, replicou:
– Sim, meu caro. A Magia é a Ciência das ciências, pois ela repousa no imo de cada uma de suas ramas atuais. Houve um tempo em que a Ciência era uma só, e aquele que a possuía, possuía também os segredos da Natureza. Essa Ciência é baseada no conhecimento das leis universais e dava aos seus possuidores o poder de atuar sobre a Natureza e sobre os demais seres, operando aquilo que hoje chamam de milagres, que nada mais são do que fenômenos naturais, produzidos por homens que, conhecendo as leis e a maneira de aplicá-las, podem livremente manipular forças tão poderosas, que, diante delas, a energia nuclear, de que tanto se orgulham os cientistas de seu mundo, nada mais é que brincadeira de crianças. Olhe ao seu redor! Tudo isso que vê foi feito pelo homem. Estas grutas e cavernas, estes túneis, esta iluminação, tudo, enfim, que aqui está e muitas outras maravilhas que ainda não viu, são o fruto do trabalho humano. Esse saber colossal não se perdeu, porém teve que ser resguardado, pois a humanidade, à medida que aumentava em materialidade, a sua estrutura embrutecia, e os homens tornavam-se mais egoístas e mesquinhos, e todo o saber que obtinham punham a seu serviço pessoal, mesmo em detrimento de seu semelhante. Desse modo, cada vez diminuía mais o número daqueles capazes de possuir essa Ciência poderosa, chegando o dia em que foi necessário tomarem-se as mais cuidadosas medidas, a fim de se evitar que muitos segredos caíssem no domínio de homens sem condições de possuí-los. Disso nasceu a necessidade de se estabelecer a Iniciação. Regras foram criadas para que somente aqueles perfeitamente aptos, e, depois de provarem sobejamente a sua integridade moral, recebessem esse conhecimento transcendente. Por não haverem tomado essa precaução, os homens que vivem na superfície da Terra vêem-se hoje a braços com terríveis problemas. Franquearam seus laboratórios e seus livros a homens inteligentes, porém destituídos de espiritualidade, não tardando que eles começassem a fabricar armas para se destruírem mutuamente e chegarem ao ponto crítico em que hoje se encontram, não descobrindo meios para viver pacificamente uns com os outros.
Asbal falava enquanto caminhávamos.
– Aqueles que não nos compreendem, acusam-nos de egoístas, por negarmos à humanidade os nossos conhecimentos. Os senhores hão de convir que temos razões profundas para tanto. Somos acusados de deixar o homem à sua própria sorte, quando poderíamos minorarlhe os sofrimentos do corpo e da alma. Acontece que a nossa Ciência não é discriminativa. Tanto pode ser utilizada para sarar como para matar, e, a partir do momento em que certos métodos fossem comunicados aos homens, não tardaríamos em vê-los utilizados para fins menos nobres… Mesmo assim, muitos dos nossos andam no meio da humanidade, geralmente incompreendidos e perseguidos. Eles ali desempenham um importante papel, que é não deixar que os homens caiam de vez na mais abjeta animalidade. Pobre da humanidade se assim não fosse! De há muito que teria descido, degrau por degrau, a escada evolutiva.
– Este é o nosso refúgio – continuou Asbal – Aqui temos o nosso próprio mundo e para aqui vêm aqueles que por seus méritos adquiriram condições especiais, para acelerarem a sua evolução e prestarem serviços à Grande Obra de redenção humana. Havíamos chegado diante de um grande portão de bronze. Asbal se deteve e, voltando-se para nós, disse:
– Chegou para os senhores o grande momento. Aqui, atrás desta porta, irão deparar com um outro mundo. Os que nele vivem, contudo, já habitaram a seu tempo, a superfície, de onde vêem. Encontrarão, para provar o que digo, alguém que conhecem. Convençam-se de que este não é um mundo de mortos e sim de vivos.
Dizendo isto, abriu uma das folhas da imensa porta.
À nossa frente, surgiu um cenário de indescritível beleza. Estávamos diante de um vasto espaço em que a terra, formando promontórios, se encontrava rodeada pelas águas de um imenso lago esverdeado. Nesses promontórios, erguiam-se antiqüíssimas construções, com carrancas de deuses estranhos, e, no centro daquela cena, um belíssimo templo, muito semelhante aos templos indianos. Ladeando-o, viam-se dois palácios com as fachadas ricamente trabalhadas. Entre esses três edifícios estendiam-se formosos jardins, nos quais brincavam crianças e perambulavam à solta lindas corças.
Os promontórios eram ligados entre si por pontes de pedra e, nas águas que os separavam, cresciam nenúfares e nadavam alvos cisnes. Até onde podia alcançar a minha vista, aquela paisagem estava pontilhada de pequenas residências de tipo campestre, construídas de pedras. Homens escuros e mulheres de tez clara achavam-se empenhados nas mais variadas atividades. À pouca distância, uma jovem, de rara beleza, divertia-se brincando com uma corça, que parecia entender-lhe as palavras.
A cena que tínhamos diante dos olhos irradiava intensa paz. Dei mais uns passos para fora da porta que acabávamos de transpor, calcando sob os pés a grama macia que atapetava o chão. Levantei a vista para o céu e não vi sobre a minha cabeça a abóbada rochosa que esperava encontrar. Em verdade, não vi nada além de um céu azul brilhante, mesclado profundamente por uma tonalidade dourada. Não vi sol, e a luz difusa parecia uniforme em todo o ambiente.
Confesso que fiquei absolutamente perplexo. Julguei que havíamos saído outra vez para a superfície, depois de havermos descido pelo interior da montanha e chegado a algum vale que lhe ficava aos pés. Interroguei Asbal.

– Não! Não estamos na superfície e sim em Duat – disse-me ele.
Não pude conter-me! Dei mais uns passos para o ar livre e alonguei a minha vista pelas cercanias. Lá ao longe parecia-me divisar o horizonte tal como ele se apresenta na superfície. O céu prolongava-se até encontrar a terra revestida de bela vegetação. Os canais e os promontórios perdiam-se à distância, e era-me impossível aceitar a idéia de estar no interior da Terra.

Voltei a encarar Asbal, que se mantinha estático, com os braços cruzados sobre o peito a olhar-nos compassivo.

– Explique-se, por Deus – disse-lhe.

– Tentarei fazê-lo compreender o enigma deste mundo – respondeu ele – pois essa foi uma das razões pelas quais aqui vieram.
Calou-se por um instante como quem busca palavras adequadas, e depois recomeçou a falar com sua voz pausada, entranhada daquele sotaque curioso.

– Começo por dizer-lhes que o nosso dia aqui tem duração de 18 horas e não de 12, como ocorre na zona intertropical da superfície. Aqui não há variações estacionais, e nossa noite tem sempre a duração de seis horas em termos de tempo a que estão acostumados. Com referência ao tempo, temos uma concepção diferente sobre o mesmo. A luz que nos ilumina não provém do Sol e sim de uma outra fonte que poderemos considerar como sendo o coração da Terra, onde nunca há noite. Ali também não é a luz do sol que tem influência e sim aquela que provém do “Olho de Druva”, eternamente fixo no Pólo Norte. Por um metabolismo que é difícil de explicar, essa luz é que ilumina perenemente o interior do nosso globo através do seu eixo imaginário, e dali é que se irradia a luz que vem ter ao nosso mundo. É uma questão de luz convergente e divergente, que a ciência da superfície ainda não sabe bem o que significa. O efeito dessas energias lumínicas é que lhes dá toda a impressão que estão colhendo, e são elas que, vibrando no ambiente, criam esse céu azul que lhes parece infinito. O mesmo fenômeno, porém, sob outra modalidade, é o que ocorre na superfície durante as horas do dia. A refração da luz solar na atmosfera forma aquele manto azulado que parece uma campânula sobre a terra, fazendo desaparecer a sensação de infinito que se tem durante a noite, quando vemos as estrelas brilhando na escuridão do espaço. De dia, o céu, na superfície, não parece infinito. Algo semelhante, como vêem, ocorre aqui.
– Outra ilusão, que precisa ser eliminada, é a de que estamos numa caverna de restrita dimensão. Como estão vendo, o espaço aqui é bastante amplo, variando de 10 a 15 quilômetros em todos os sentidos, havendo lugares que atingem espaços maiores.
– O ar que respiramos aqui não tem a mesma composição que o da atmosfera da crosta. O oxigênio é substituído pelo ozone e as percentagens de gás carbônico e azoto também são diferentes, além do que, existem outros fatores desconhecidos dos senhores que tem função importantíssima na manutenção de nossas vidas.
Não sabendo o que dizer de tudo aquilo e com mil perguntas brotando do meu cérebro, preferi manter-me em silêncio. Havia tanto em que pensar… Estava tão confuso que achei melhor limitar-me a observar tudo meticulosamente.
Asbal, depois daquela explicação, mantivera-se calado por longo tempo. Depois, vendo a nossa perplexidade, voltou a falar-nos:
– Não lhes é fácil realmente compreender, de pronto, esta maravilha que vêem. Poderia dizer-lhes que estamos em uma outra dimensão do espaço. O mundo de Duat, em verdade, não é só isto que têm diante dos olhos. Existem regiões luminosas como estas, em função, e regiões obscuras, onde não há atividade. Existem também regiões diferentes umas das outras, tendo cada uma delas a sua tônica própria.
Nesse momento, foi que constatamos que vinha ao nosso encontro um outro personagem. Era de tipo diferente de Asbal e Ra-Mu. Trajava, porém, o mesmo tipo de vestiário. À medida que se aproximava, foi crescendo o nosso espanto, pois começávamos a reconhecê-lo.
Indubitavelmente, tratava-se de um amigo nosso. Vinha sorridente e demonstrava uma forte emoção. Sem poder conter-se, correu para nós e abraçou-nos num só amplexo. Seus olhos estavam cheios de lágrimas de alegria, que não podia reprimir.
– Deus meu! – exclamava – Nunca imaginei que me estivesse reservada tanta alegria hoje. Afastou-se em seguida e, olhando-nos interrogativamente, parecia não acreditar no que seus olhos viam. O mesmo acontecia conosco, pois aquele amigo há já alguns anos falecera. O que se passou em seguida, e a conversa de alguns minutos que mantivemos, não pode ser relatado e nem o nome daquele querido amigo, revelado. Nosso encontro foi breve e logo ele se afastou de nós, penetrando no interior da grande biblioteca. Nossa despedida foi simples, sob as vistas de Asbal, e, em meu coração ficou a sua grata recordação. Não esqueço, contudo, um pormenor importante: “X” (chamemo-lo assim) estava mudado.
Todo o seu ser irradiava um encanto novo. Havia algo profundo em seus olhos, e tudo nele transcendia um perfume indescritível de pureza. Uma espécie de paz havia descido sobre ele e não vacilaria em dizer que, possivelmente, em breve estaria trilhando sendas mais altas, talvez rumo às “estrelas”…
Em Duat, aos poucos, a luz morria, numa espécie de crepúsculo fantástico que deveria prolongar-se por vários minutos, e, envoltos nessa luz, começamos a seguir Asbal em direção ao Templo…
Quando o sol começava a tingir as nuvens lá para as bandas do nascente, estávamos os três novamente na superfície da Terra. O lugar em que nos encontrávamos era a mesma clareira de onde havíamos partido, porém o caminho de regresso permanecerá para sempre ignorado por nós.

Nossos lábios estavam selados para tudo o que havíamos presenciado no Templo, e em verdade, naquele exato momento, eu de nada me recordava. Só dias mais tarde, foi que começaram realmente a voltar-me à mente todos os episódios que havíamos vivido.
Regressamos à nossa casa, desta vez sozinhos. Uma tristeza indefinida oprimia meu coração, e um vago sentimento de ausência e de saudade me acompanhava. Passaram-se os dias, e agora eu já sabia.
Sim, eu sabia que o mundo misterioso de Duat é um mundo de seres vivos e que ali palpita intensamente o coração da Terra…

 

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